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SALVADOR

Feira de Sant'anna 

Estação de trem de Feira de Sant'anna 

Estação de trem da cidade da Bahia

Salvador_cidade baixa

EMANCIPAÇÃO (ões)

Salvador_ Carnaval

A cidade que adotei como minha, Salvador, era, e é, bem diferente da que nasci, a Vila de Feira de Sant’Anna.

Entreposto comercial, fuso de rotas de caminhões, polo de agricultura e centro pujante, fôra fundada em 1549 como porta de entrada para os rios do Recôncavo onde navegam embarcações lotadas de gente e mercadorias – sobre isso falarei.

Cidade do Salvador _ 1875 por Marc Ferrez

Já a cidade da Bahia, como a chamamos, com o desafio da natureza, entre a Alta e a Baixa, foi domada em seus vales, e teve seu período de bondes com tração animal e, depois, eletrificados.

Nesse devaneio, me explico, tentarei encaixar a minha futura profissão – que, aos 17, ainda não sabia qual seria.

Mas imaginava.   

Entre os meus antecedentes, as profissões concentravam-se no comércio. Ser negociante está no cerne do português. Felizmente não me afetou.  

Não sei exatamente quantos dos meus descendentes sairão (ou saíram) para as quatro orientações profissionais que regiam no Império do Brasil: missão religiosa, medicina, engenharia ou direito – seja na advocacia, seja na magistratura. Até mesmo na diplomacia. Em qualquer delas, a chance da academia, da Academia, de ser professor.

A isso vou me dedicar nessa imensa pesquisa, porque reitero que estou falecido, mas sigo atento – e isso a ficção me permite ousar.

 

Afinal, na origem das tempestades shakespearianas do trio Antonio, Alonso – Rei de Nápoles – e seu filho Ferdinand, estava um velho feiticeiro, ironicamente chamado de Prospero. Os truques de Ariel precisam de tempo para ser desvendados.

Concluí o curso teológico circa 1875.

 

É o que a memória me entrega, passado que estou enterrado no complexo da Ordem Terceira de São Francisco.

 

Era preciso aguardar o tempo necessário para me ordenar. Dedicado, ainda não tinha atingido a idade. Daí que meu tio e tutor, Capitão Leopoldino Batista de Oliveira, requereu a minha emancipação, sob a alegação de conduta exemplar e discernimento.

 

Foi em fevereiro de 1876, época de carnaval.

Motivo de orgulho e preocupação, pois antecipava a saída dos cueiros, aos 19. 

 

Eu gostaria que alguém contasse a minha vida.

 

Não quero parecer presunçoso, gabarola como árvore garbosa, prosa feito literato sem obra, petulante feito borboleta, soberbo feito descendente de rico, emproado feito pavão, pedante, arrogante, convencido e metido como se passou a dizer muito para a frente, vanglorioso, afetado pelos exagerados, snob like a dândi, esnobe feito papel toalha, altivo ou enfatuado.

 

Ou imodesto.

 

Serei? 

 

Sozinho e de frente para a Baia de Todos os Santos e para o mundo.

 

A Bahia era – e segue – povoada por povos de diferentes raças, credos, religiões e nações.

 

Tratarei do assunto mais adiante, se o tempo permitir.

Faculdade de Medicina da cidade da Bahia

PREPARATÓRIO(s)

Espinhas no rosto, concluso o curso teológico, faltava idade para seguir para Roma e me ordenar padre.

 

Para ser aceito na Faculdade de Direito de São Paulo, precisei fazer um curso preparatório na prestigiosa e prestigiada Faculdade de Medicina de Salvador. 

Além das questões teóricos, acredito que foi, também, uma transição da minha fase adolescente para idade adulta.

Conviver com estudantes mais velhos, observar o funcionamento de uma instituição de Ensino Superior, relacionar-me com pessoas de outras cidades, caminhar pelas ruas, apresentar-me para pessoas do sexo feminino, conviver com habitantes de diferentes etnias que povoam Salvador, descobrir novos sabores na alimentação, rezar em outras Igrejas, ir na praia, dormir em Repúblicas de Estudantes e assistir a aulas com professores de referência internacional – como viria a fazer em São Paulo –, tudo isso me fez mais preparado.

E, espero, melhor.

Os certificados, soube, ainda estão salvos e presentes nos arquivos do Largo de São Francisco.

 

FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

 

“Certifico que à Fl. _ do respectivo Livro de exames consta que o Sr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos fez exame de:

Portugues em 12 de novembro de 1877 e foi approvado plenamente.

Ingles em 13 de novembro de 1877 e foi approvado plenamente.

Frances em 14 de novembro de 1877 e foi approvado com distinção.

Latim em 21 de novembro de 1877 e foi approvado plenalmente.

Rhetorica em 22 de novembro de 1877 e foi approvado plenamente.

Geographia em 29 de novembro de 1877 e foi approvado.

Arithmetica em 30 de novembro de 1877 e foi approvado.

Geometria em 3 de dezembro de 1877 e foi approvado.

Historia em 4 de dezembro de 1877 e foi approvado plenamente.

Philosophia em 6 de dezembro de 1877 e foi approvado plenamente.

E para constar se passou a presente.

Secretaria da Faculdade de Medicina da Bahia em 2 de março de 1878.

 

Observe-se, meu caro leitor, que todos os documentos continham um ‘sello’ verde de 200 réis e desenho do rosto do Imperador Dom Pedro II.

 

Ora pelotas. Ora bolas.

Pense comigo. Os documentos são de 2 de março. Certamente os levei na minha algibeira para garantir minha matrícula. .

Treze dias me separavam do meu destino.

Confira a data abaixo.

Assim lavrada:

 

Illmo. Exmo. Srn. Dr. Conselheiro Diretor da Faculdade de Direito de S.Paulo

Matricule-se, 15 de março de 1878

Número 31.

Filinto Justiniano Ferreira Bastos, natural da Bahia, filho legítimo de João Justiniano Ferreira Bastos, estando habilitado para matricular-se no primeiro anno da referida Faculdade, como provam os documentos junctos, pede a V.Ex. digne-se de mandar inscrevêlo na lista de estudantes do supramencionado anno.

Pelo que espero deferimento.

 

Assinatura ilegível, como sói acontecer, e por mim, Filinto, dia 14 de março de 1878.

E o fatídico ‘Sello’ verde do Imperador, pelo qual paguei 200 réis.

O primeiro pagamento não tenho.

Mas o segundo lá consta:

 

MATRÍCULA DA FACULDADE DE DIREITO DE S.PAULO

EXERCICIO DE 1878-1879

Rs. 51$200

COLLECTORIA DA CAPITAL

A fl. 144V do livro de receita fica lançada a quantia de cincoenta e um mil e duzentos reis que pagou o Snr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos por sua 1ª matricula do 2º anno da Faculdade de Direito desta capital.

Collectoria de S.Paulo em ___ de março de 1879.

Assinados por um Collector e um Escrivão.

Mais uma vez, agradeço a herança de meus pais.

 

Abro parêntesis para o bravo (no bom sentido) advogado e promotor Fernando Pinto Queiroz em um valoroso discurso (um pouco exagerado, diria) – ao se referir a mim:

 

– Com o Filinto (não esqueçamos de Filinto Elysio) e o Justiniano (o grande jurista) do prenome, que também lhe pertencia, o pai lhe transmitira o ex-libris dos BASTOS, em que, afirmativa e profeticamente, se lia: NÃO SE RENDE, mensagem por ele honrada em todo o curso de sua invejável existência.(...)

 

             

  EX-LIBRIS: NÃO SE RENDE

Tio-tutor, capitão Leopoldino teve a ideia da Emancipação, que até hoje agradeço.

– Requeiro a emancipação de meu tutelado, Filinto Justiniano Ferreira Bastos, para que siga para a Europa e se forme em Cânones.

 

Enquanto aguardava mais idade para longas travessias – sem travessuras – o curso preparatório na vetusta Medicina de Salvador abriu meus olhos.

A viagem para o planalto paulista me confortou a alma, o coração e os dedos, que passaram a escrever manifestos contra a terrível escravidão.

Cito o advogado, jornalista e escritor Pessanha Póvoa, que publicou na edição de 1870 do boletim paulistano ‘Anos Acadêmicos’:

– (...) eu direi, bem alto e forte, para que todos ouçam, o que valem esses esforços e o que são estudantes de São Paulo.

Escrito nas estrelas, em 1878 minha bússula apontava para o Sul.

Em 82 foi a vez de apontar o Nordeste e salpicar um frevo em Recife – uma praxe da época em se completar o curso em outra escola.

Batalhas abolicionistas me chamavam.

Emancipado com 20 anos de idade, deixei a Roma baiana e lá fui eu para... São Paulo.

A Roma do Vaticano ficaria para uma próxima vez.

Infelizmente, morri sem ter visto o Papa. Qualquer um.

ESTATÍSTICAS NÃO SÃO ESTÁTICAS

Quando sai de Salvador para São Paulo, Salvador tinha cerca de 129 mil habitantes. Na virada do século, saltou para 205, quase 206 mil. Em 1920, fomos para 283 mil moradores. Perto da minha morte, cerca de 290 mil.

 

Ah, as estatísticas.

 

Quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Mais uma vez, busquei os dados no IGHB, como já dito fundada em 13 de maio de 1894, a entidade cultural mais antiga do Estado, e da qual faço parte – desculpem se estou redundante.

O fogo me assusta, como falei sobre o incêndio no Largo São Francisco durante minha estadia estudantil paulistana.

 

Entre os dramas que provoca, um dos mais fortes foi perto de casa, em 1912.

 

Houve um bombardeio em Salvador. Motivo besta? Sim. Apenas disputas entre as lideranças oligárquicas na sucessão do governo – com consequências para a população, a verdadeira vítima.

 

A biblioteca e o arquivo da entidade cultural mais antiga da Bahia foram atingidos. As labaredas levaram fumaça pela cidade e documentos históricos viraram cinzas. No meio, uma coleção irrecuperável de jornais.

 

Sempre fui leitor assíduo de periódicos, podem perguntar para Carolina.

 

De Feira de Sant´Ana, destaco o jornal Feira e os mais antigos, O Município, que foi de 1892 a 94, O Propulsor, que só durou em 1896 e a Gazeta do Povo, de 1891 a 1893, anos que eu retornava paa a região depois de minha formatura.

 

De Salvador, acompanhei A Tarde, Tribuna da Bahia, Correio da Bahia, Correio de Notícias, Diário da Bahia, Diário de Notícias, A Bahia, Jornal de Notícias, Gazeta do Povo e, para questões legais, o Diário Oficial. 

De São Paulo, como já dito, tive o privilégio de sentar na mesma classe de Júlio de Mesquita, fundador do jornal A Província de São Paulo, depois transformado em O Estado de S.Paulo. Juntos, participamos do jornal estudantil, quase um panfleto, intitulado A Reação.

 

Da Academia, outro destino meu era o IGHba, instituto que sempre teve destino mais calmo: começou na Câmara de deputados e em 1920 já estava em sede própria. No centenário da Indpendência, instalou-se em definitivo no atual Palácio, bem em frente onde chegou a ficar a Faculdade de Direito, na minha querida Joana Angélia, perto da minha Congregação da Piedade.

 

Por ironia, duas datas, dois marcos da Independência, da libertação política, da ‘redempção’ da Bahia. A Casa da Bahia, Palácio-Monumento, Avenida Sete de setembro, artéria principal de Salvador.

 

A Casa da Bahia, como o IGHB é chamado por nós, ainda tem a maior coleção de jornais e o maior acervo cartográfico do Estado. Juntos, a Biblioteca Ruy Barbosa e o Arquivo Histórico Theodoro Sampaio reúnem milhares de títulos e imagens.

 

 Tradições.

 

Geografia, história, arqueologia, genealogia, sociologia, arqueologia, ciências, artes, etnografia...e as línguas do Brasil – especialmente dos indígenas. Sendo na Bahia, não poderia faltar a cultura afro-brasileira.

 

As primeiras coleções vieram de doações dos sócios fundadores e de simpatizantes, como educadores, empresários, políticos e profissionais liberais. Começou com 700 obras. Foi enriquecida pela coleção de Rui Barbosa, embora incompleta.

 

Foi emocionante acompanhar a construção de estantes de jacarandá, desenhadas e talhadas especialmente para o Instituto.

 

A coleção do nosso ilustre Theodoro Sampaio está lá.

 

Entre as raridades, as miniaturas de Magni Des. Erasmi, publicado em 1642, e de H. Grotii, publicado em 1645. Tenho particular apego a um livro do Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, publicado em 1837 e uma Bíblia que foi para o prelo em 1579.

Agora, já falecido e ido, não sei quantas obras serão. Mas arriscaria cerca de 30 mil, se fizer meus cálculos matemáticos – e os poderes públicos tiverem colaborado. Gastei as páginas da Enciclopédia Francesa, de 1750, criada pelos iluministas d’Alembert e Diderot. Minhas digitais são testemunhas.

 

Apreço, tenho, pelo Dicionário em Tupy – grafia alternativa de Tupi. Admiro a obra do padre José de Anchieta, pedra humana fundamental na escolha de capital paulista, fundada com esse nome por ser no Dia do Apóstolo, 25 de janeiro. Cuidador dos índios e de suas línguas, vi e ouvi como é forte no sotaque local – e para ele escrevi uma poesia, já lida por você. Pesquisei o dicionário na minha volta da cidade dos polipaulistas.

 

Aos fins de semana, tenho alegria ao folhear a Revista do Instituto.

 

Uma informação útil aos que são devotos do candomblé e da cultura negra.

 

Católico, sempre nutri respeito.

 

Abolicionista na juventude, como todos já estão cansados de saber, ainda convivi com o preconceito social, religioso e racial no exercício da magistratura e no papel de julgador de crimes.

 

Desgastante conferir injustiças em processos policiais.

 

Sim, julgador. Afinal, é o que somos, os juízes.

 

Lá está a primeira edição do dia 21 de dezembro de 1863 do periódico crítico Alabama. No exemplar, há a identificação dos Terreiros de Salvador em meados do século 19. Vale a pena conferir...

IMPÉRIO-REPUBLICANO

O Brasil assistia, convivia, testemunhava mudanças radicais na vida jurídica a partir de 1870. Talvez aí esteja minha atração. Foi o efeito do primeiro Manifesto Republicano que vociferava contra ‘o poder sagrado, inviolável e irresponsável do Imperador’ e pregava:

– (...) a convocação de uma Assembléia Constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regime é necessidade cardeal.

Bingo.

 

Sob o comando do Barão do Rio Branco, que foi um titã entre 71 e 75, o Poder Judiciário foi reformulado.

Lá de Salvador, eu já procurava me informar pelas gazetas e pelas tertúlias com os padres superiores.

Dispositivos do processo penal foram modificados. Autoridades policiais perderam a competência para presidir a fase de instrução do processo e para pronunciar o réu – atribuição ganha em 41.

A lei de 1871 ampliava o direito ao habeas corpus , instituía a fiança provisória e regulamentava a prisão preventiva.

Se tiver paciência e persistência, leitora e leitor, tratei do tema em alguns dos meus livros. Devem estar espalhados por aí.

Vitória do indivíduo. Vitória de uma sociedade mais livre.

Todos são inocentes até prova em contrária, diz o jargão.

Judiciário redesenhado, inclusive com o aumento de 50% dos distritos judiciais – de 230 para 350. E, principalmente, criação de Tribunais de Relação em capitais, caso de São Paulo.

Qual a importância? Eram colegiados com competência para conhecer e dividir todos os recursos.  

Enquanto isso, as agitações políticas se espalhavam. Inclusive na pacata, porém progressista, Itu, a 100 quilômetros da capital paulista, que sediou uma histórica Convenção para lançar as bases de um Partido Republicano – obviamente com a liderança dos plantadores de café, celeiro de estudantes da São Francisco.

Foi em 1873.

Entre os 133 convencionais, 78 fazendeiros contra 55 de ‘outras profissões’.

O movimento me animava.

A terra roxa mostrava sua força. A escravidão, idem. Em apenas dez anos, entre 1864 e 1874, o número de cativos nas fazendas paulistas passou de 80 mil para 174 mil. No primeiro recenseamento em âmbito nacional, em 1872, São Paulo contou 31 mil habitantes – muito menos do que os escravizados.

O salto populacional estava começando.

Inclusive com a minha chegada.

 

TELÉGRAFO

Ponto e traço. Que revolução tecnológica.

Nas vésperas do natal de 1873, foi estabelecida a ligação por telégrafo entre o Rio de Janeiro e Belém, Recife e Salvador. Pedro II participou do ato. Um cabo fazia a ligação entre as cidades. O Imperador mandou cabogramas aos presidentes das três Províncias:

– Já se acha o cabo submarino no território da capital do Brasil. A eletricidade começa a ligar as cidades mais importantes deste Império, como o patriotismo reúne todos os brasileiros no mesmo empenho pela prosperidade de nossa majestosa pátria. O Imperador saúda, pois, a Bahia, Pernambuco e Pará por tão fausto acontecimento, na qualidade de seu primeiro compatriota e sincero amigo. Até aos bons anos de 1874.

Logo veio a ligação com a Europa. Ao vivo da Biblioteca Nacional, na rua do Passeio 46, a mensagem foi enviada para o presidente da Brazilian Submarine Telegraph Company e aos reis de Portugal, Inglaterra e Áustria.

Demorei para enviar meu primeiro telegrama. A carta ainda me servia para mais palavras. Deveria tê-las arquivada.

Arrependimento post mortem…

ATLÂNTICO

Volto ao falar de caminhadas...

 

Em um fim de semana muito calmo, com a casa vazia e filhos espalhados entre parentes, Calu e eu resolvemos passear pelo novo litoral de Salvador, em início de desbravamento. Se antes era preciso cavalgar até Itapuã e Lagoa do Abaeté, novas avenidas e ruas começaram a ser construídas na direção da Barra – e de uma sequência impressionante de praias engolfadas por montes.

 

Ficavam no sopé da Graça, do Chame-Chame e da Federação.

 

Ponto para meu colega de ALB, J.J.Seabra, em sua primeira gestão como governador, entre 1912 e 1916. O passeio substantivo ficou bonito e até ganhou uma coluna comemorativa na novíssima Avenida Oceânica, bem defronte do Forte da Barra. Lá estava cravado o nome de mais um xará meu, um raro Filinto, de sobrenome Santoro, engenheiro responsável pela obra ‘oceânica’.

 

Fica defronte do Forte de Santo Antonio da Barra que, segundo a linguagem militar, “cruzava fogos com o Forte de Santa Maria”, que defendia o Porto da Barra, onde desembarcou Tomé de Souza, já na beirada da Baía de Todos os Santos. Que, por sua vez, “cruzava fogos com o Forte de São Diogo”.

 

Apesar do sol quente e da sombrinha carregada por Carú, caminhada proveitosa pela paisagem e esticada de pernas.

 

Em 1910, Amaralina já tinha trilhos de bondes. O nome do bairro sempre me intrigou. Até que descobri. Ali também tinha uma Fazenda, propriedade de José Alvares do Amaral. Ponto: Amaral - Amaralina. E ali descemos para apreciar a retirada de redes de pescadores, profissionais que admiro pela dedicação, paciência e eficiência.

  

Na sequência, começava a Fazenda Pituba, onde a presença de vacas nos colocou na rota de fuga e de volta. Anos depois, que pareciam décadas, final dos anos 1920, dois empreendedores compraram o latifúndio, que chegava a Itapuã, e criaram o projeto Cidade Luz. Nascia o bairro da Pituba. Vale citar o nome da dupla, Joventino e seu cunhado Manoel, ambos da Silva.

 

Mas não me atraia. O vigor das ondas e das marés com seus refluxos fortes assustava qualquer pessoa com a quantidade de crianças e adolescentes como nós tínhamos. A mansidão – embora inconstante – das águas da Cidade Baixa, lá pelos recantos do Humaitá, eram-nos mais prazerosos.  

 

O passeio-caminhada começara cedo. Hora de voltar e pegar a missa da tarde, já na Piedade.

 

Ao chegar em casa, já ao anoitecer, tive tempo de ler um documento para Calu. Era o Annaes do Archivo Publico do Museu do Estado da Bahia. Ela me ouvia com atenção, apesar de certo dissabor com tantas informações históricas. Espero que o ilustre leitor ou leitora tenha a mesma paciência.

 

Publicado em 1923, retratava o ‘Registo de uma sesmaria de terra desta camara de seis legoas da terra do Tapoã de seis legoas para pastos deste Conselho’. O DESPACHO DO SR. GOVERNADOR.

 

Assinado por Thomé (ou Tomé, ainda hoje não o sei) de Souza, assim descrevia e proclamava:

 

– Por virtude do Regimento d’El-Rei Nosso Senhor, e me parecer serviço de Deus e desta cidade do Salvador, dou de sismaria para pastos de gados à dita Cidade e seus termos tres lagoas de terra ao longo do mar que começarão passadas duas legoas além do Rio Vermelho, e hirão até aonde se acabar o termo das seis legoas que a dita Cidade tem.

 

Percebi um piscar de olhos de Calu. Hoje assim a estou chamando pela intimidade do lar.

 

Demonstrava certo cansaço da longa caminhada pela Orla, novidade de Salvador. Chamei a atenção sobre o Rio Vermelho, por onde passamos. Os passos largos do crescimento contrastavam com as decisões do primeiro Governador do Brasil. As vacas e os bois iriam ocupar as fazendas defronte às praias. Uma colonização necessária para produzir alimentos e ocupar as regiões, potencialmente alvos de outras nações, como Holanda e Espanha.

 

Calu insistiu que continuasse a leitura.

 

Já havia alertado que o mesmo livro dos Annaes tinha uma citação ao pai dela na página 92. Constava a escritura finalizada da Fazenda Timbó em nome de Feliciano. Isso, na longínqua Amargosa, em pleno Recôncavo. Expliquei que era uma prova do método de colonização adotado pelos Reis de Portugal e, consequentemente, para o Brasil. As sismarias, como se escrevia, se espalhavam do litoral para o interior.

 

Ela, benevolente com minha explicação de professor, pediu que seguisse:

 

– E para o Sertão toda a que fôr campo bom para pastos de gados e as agoas que forem para o Engenho, e matos que dentro nestas terras houver ficarão livres para S.A. as dar ou a quem seu poder tiver, e nas duas legoas que estão dadas além do Rio até chegar a onde começão estas tres legoas que a dita Cidade dou, enquanto não as occuparem seus donos as poderão aproveitar a dita Cidade e seus termos, della, do que se fará Carta de Sismaria com as condições do Regimento a qual estará na arca desta Camara, hoje vinte e hum dias do mês de Maio de mil e quinhentos e cincoenta e dois annos.         

 

21 de maio de 1.552.

 

Quem diria?

 

Tanto tempo passado e aqui seguíamos nós, construindo nossa família. Falando nisso, já de noite, as filhas começaram a chegar das visitas que fizeram, assim como os dois netos e as duas netas que criamos.

 

Eu já estava planejando uma visita a Amargosa, que atravessava mudanças familiares. O cunhado de Carolina, Antonio Bastos Freitas Borja – por tabela também meu sobrinho, filho de minha irmã Elvira –, casado com Oliva, já havia assumido as partes das irmãs e do irmão. Acabara de falecer.

 

Estamos em 1933. Foi quando seu filho Clovis, apesar de ser do Direito, de não ser da área agrícola nem da pecuária, resolvera administrar a Timbó. Desejei-lhe sorte, alertei sobre os riscos dos negócios – inclusive jurídicos – e comecei a programar esta longa viagem para quem, como eu, já estava perto dos Oitenta.

 

Muito mais longa do que nosso passeio dominical pela Barra, Rio Vermelho, Amaralina e Pituba.

 

77 anos cansam. 

 

QUERINO

Manuel Querino foi meu conterrâneo e contemporâneo. Falar de alimentação na Bahia é lembrar de seu nome. 

 

Querino defendeu teorias de miscigenação e explicou o que refletia nas panelas. Herança alimentar. Dendê e quiabo. Matérias-primas. Técnicas de preparação e cozimento. Soavam como música para um abolicionista como eu:

 

– (...) a restauração do negro como personagem social a se considerar no desenho da nação livre.

 

Na ALB, vivo fôssemos, defenderia a candidatura e o ingresso de Manuel Querino, sua trajetória pessoal e a importância de seu trabalho e de seu legado. Em contraste com a modernidade de elevadores, bondes, hotéis, confeitarias, praças, eletricidade e outros equipamentos urbanos, que tanto descrevo aqui, Salvador tinha – e tem – ‘particularidades rurais’.

 

Entre contrastes sociais, afirmo a repressão policial que presenciei contra a religiosidade negra e, também, a alimentação popular. Como afirmou Querino:

 

– (...) em particular dos pretos, que era vista como suja e gordurosa.

 

Uma breve história: Manuel Querino nasceu em 28 de julho de 1851 na minha também querida Santo Amaro da Purificação, região açucareira do Recôncavo. Era filho de negros livres, porém sem dinheiro ou posses.

 

Aqui encontro certa semelhança entre nossas trajetórias.

 

Cedo, mudou-se para Salvador na companhia de seu tutor, Manoel Correia Garcia. Estudou desenho na Escola de Belas Artes e logo virou desenhista contratado como funcionário público na Diretoria de Obras Públicas e na Secretária de Agricultura.

 

Aqui nos distanciamos. Com verve política, elegeu-se vereador e virou ativista de causas operárias.

 

Participou, entre indas e vindas, da Sociedade Protetora dos Desvalidos e da Irmandade do Rosário dos Pretos. Ecumênico, também se relacionava com a(s) religião(ões) afro-baianas. Escreveu o livro ‘A raça africana e seus costumes na Bahia’.  Com louvor, defendia que os hábitos e costumes africanos foram fundamentais na formação da sociedade brasileira.

 

E quem há de negar?

 

SABOR

Aprecio sorvete.

A invenção do refrigerador em 1875 pelo germânico Carl Von Linden resolveu o problema maior do sertanejo que não tinha como manter alimento. A carne de lata, com bastante gordura, é uma invenção mineira de grande valia.

Feito a carne do sol, aquela que nunca vai ao sol. Reza a lenda que ganhou esse apelido porque sempre se gritava:

– Tire a carne do sol.

Pronto. Tirou-se. O contrário do sorvete, iguaria que me refresca. A geladeira viria salvar esse prazer, assim como outras comidas. Frutas, frutas, frutas.

Também gosto de Nega maluca. Explico, antes que me incriminem. Bolo de chocolate que leva farinha, leite, óleo, açúcar e fermento, além do poderoso chocolate, que vem do cacau da Bahia. Um dia precisaria ter conhecido Ilhéus e os futuros familiares produtores deste fruto rico e saboroso.

Avenida Oceânica 

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