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CANDEAL

Senzala_Fazenda Candeal_Feira de Sant'Anna

Candeal, 2 de Janeiro de 1882

 

DOS CÉOS À TERRA

 

Era à beira da estrada a casa pobre,

Onde vi-a, a scismar, a vez primeira

Lembra-me ainda aquella mão ligeira,

Em que pousava sua fronte nobre 

Da janela no tosco peitoril 

Um braço descansava docemente.

 E da brisa a suavissima corrente

 Osculava-lhe oangelico peitoril.

 

O mattagal na estrada se estendia

 Ao longe, ao longe, a se perder de vista

 Do rosicler a desbotada lista

  

Rubro-dourada lá nos céos se via.

 

Juncto à casinha, alta mangueira enorme

Os fructos amarellos ostentava.

 E um curió suave gorgeiava

 De esgalhada braúna em rama informe.

 

 Dentro em mim revoavam mil idéas

 Confusas, em tropel ... Algum segredo

Haverá n’aquella alma, horrível, tredo,

 Que a estorleque em tétricas cadeias?

  

Ou será a ridente phantasia

 Que assim transporta a linda tabarôa

 A pensar em alguém, cuja voz soa

A seu ouvido em magica harmonia?

 

Não podia atingir este mysterio

Que a moça arrebatava tanto e tanto!

 - Não sabendo furtar-me ao ledo encanto

 De fallar à donzela; grave, e serio,

 

O tordilho dirijo à carunchosa

 Porta do tal casebre, a passo curto,

 A vêr se poderia, mesmo a furto,

 Mirar do campo aquella flor mimosa.

  

Apeei-me de manso, Scismadôra

Ainda estava a moça. O brando seio

 Arfavá-lhe, gentil. Todo o receio,

 D’ est’artelhe falei: “Minha senhora ...”

 

Então ela me olhou: desapontada,

Sahindo da janela, de repente,

Cerrou-a sobre mim, e disse irada:

- Vá-se embora, senhor! Que moço, gente!

 

 por Filinto Bastos

MEU CANDEAL 

(livremente interpretado por Ninho Moraes)

 

No bico de pena, na caneta tinteiro e na Remington, batuco as lembranças do Candeal. 
Os sons que lá ouvi. 
As imagens que meus olhos gravaram. 
Os medos que senti. 
As alegrias que vivenciei. 
Os ensinamentos que aprendi. 
Os livros que comecei a ler. 

Havia Rita. Havia Thomé. Havia Venceslão.

Pó e poeira. O Candeal era um universo paralelo. Corria entre porteiras. Cueiro. A parteira anunciava novo rebento. Ciscar no jardim era um salto para o pintinho que fugia pela fresta do galinheiro. Ouvia o mugir do gado e o relinchar dos jegues. Delírio. Senzala e curral. Nomes. Descoberta de significados. Faca, facão. Machado, espada. Peixeira. Afiada. Afiação. Testamento. Primeiras letras. Capela. Oratório. Obrigação. Chuva forte no sertão. Seca forte no sertão. Matinha assombração. Ser preto. Ser branco. Chicote. Chibata. Trovão. Sela. Vela. Encilhar. Couro. Charque. Arreio. Lua na poça. Passarinho. Sabiá. Galinha da canela preta. Galinha de capoeira. Bode do v izinho. Encerar o chão. Trovejar. Cavalgar. Charrete. Carroça. Cesto de pão. Pinga-pinga. Telhado. Corrimão. Lenha. Fumaça. Fogueira de São João. Palha queimada. Palha molhada. Morcego. Assombração. Fresta da janela. Sermão. Fuga. Fugitivos. Farinha do mesmo saco. Farofa. Feijão fradinho. Feijão preto. Lavar a roupa na lagoa. Rio que passa. Rio que volta. Rio que contorna. Rio que transborda. Rio que afoga. Ranger das tábuas do chão. Escuridão. Clarão da lua. Escuridão do dia. Eclipse. Noite-dia. Arrepio. Assovio. Coruja. Gavião. Urubu Cerejeira. Mangueira. Chão roxo. Jambo. Pedreira. Cocheira. Aluvião. Banho de cuia. Sem torneira. Cisterna. Capataz. Capitão. Sabores. Cerca viva. Tempero. Esterco. Telha quebrada. Escorpião. Picada de abelha. Ferimento. Machucado. Promessa viva. Passamento. Nascimento. Certidão. Posse. Quilombo. Lombo. Carne seca. Música. Canção. Fresta da porta. Espingarda. Garrucha. Revólver. Pistola. Chicote. Chibata. Pai-Mãe-Irmão. P&aacu te;ssaro de imigração. Beija-Flor. Sinos. Badalar. Destinos. Praga. Inchaço. Banhar no açude. Inflamação. Besouro. Besuntado. Estornar. Retorcer. Embranquecer. Clarear. Dar nome aos bois. Tirar leite na teta. Encilhar. Bezerro desmamado. Cavalo encilhado. Sela frouxa. Sela apertada. Sela arriada. Aflição. Pavor. Pesadelo. Assombração. Zunido do vento. Arrepio. Arame farpado. Tempo de plantio. Armazém. Sentinela. Terraço. Teimosia. Chaleira. Trás-do-Morro. Ventania. Oração. Aos vivos e aos mortos. Purgatório. Punição. Penitência. Flagelo. Autoflagelo. Malhação. Terço. Rezar. Contar os pontos. Contar os contos. Contar os cantos. Tecer. Costurar. Agulha e linha. Agulha no palheiro. Milho. Espiga. Palha. Pão. Mandioca. Receita caseira. Receita escrava. Uniforme. Tapioca. Tradição. Comida da Cabeceira. Vinho do Porto. Aguardente. Tinta. Tinturas. Cores de paredes descascadas. Percevejo. Corar. Desbotar. Bordar. Engomar. A louça limpa. Importada. Transatlântica. Fome. Carestia. Amanhecer. Anoitecer. Entardecer. Iluminar. Alumiar. Aliviar a dor. Benzer. Relógio na parede bate as horas. Contar os minutos. Somar. Subtrair. Abastecer o tanque reservatório. A seca cruel. Período de chuva? Março-abril? Setembro-outubro? Junho-julho? Janeiro-fevereiro? Agosto? Novembro-dezembro? É maio… Contar os dias. Anotar no papel. Virar a folhinha. Conferir o relógio? Pagar salário. Comprar mantimentos. Horas trabalhadas. Dias que não terminam. Jornadas. Troca de turnos. Manter o lampião aceso. Cobras e serpentes. Incensos e velas. Lamparina. Sertanejo. Manteiga de garrafa. Carne de Sol. Carne seca. Carne de charque. Carne de segunda. Pio. Benção. Água benta. Casa abençoada. Pia batismal. Bacia de água. Tigela. Urinol. Escarradeira. Escrivaninha. Escurinho. Pena de pavão. Bico de pena. Algibeira. Pedal. Couro talhado. Coro da missa. Capela. Ratos furam sacos. Pequenos furtos. Prejuízo contábil. Encharcados. Aluvião. Herança. Transferência. Carta no correio. Poça de água. Mancha no chão. Berços. Beiços. Choros e lágrimas. Cortina. Fechadura. Ferradura. Sótão tem dois acentos. Frase curta. Porão. Port&atild e;o. Porteira. Bambuzal. Plantio. Semeadura. Cipó. Rasteira. Ribeirinho. Cercadinho. Pelourinho. Fruta no pé. Umbu. Cajá. Carambola. Doce. Melaço. Rapadura. Amargor. Ferimento. Punção. Expiação. Dor de dente. Rezar. Orar. Flagelar. Flagelo. Flanela. Lençol bem passado. Lenço bordado. Anagrama. M.A.O. de Maria Alvina d&rsq uo;Oliveira. J.J.F.B. de João Justiniano Ferreira Bastos. INRI no missal da capela. Inicial. Iniciais. Siglas. Canaleta. Córrego. Espiral. Escorregar na lama. Escorregar no piso encerado. Lustre de Cristal. Bacia de cerâmica. Banheiro tinha privada? Higiene. Gritos. Surras. Surtos. Sustos. Histórias mal contadas. Surrupiar. Inventar. Mentir. Flertar. Apostar. Reverenciar. Reverendo. Padre. Pai Nosso. Canção de ninar. Mamar. O bem. O mal. Pitar. Fumar. Esfumaçar. Fumo de corda. Cigarro de palha. Charuto do Recôncavo. Louva-a-Deus. Grilo. Saúva. Sarna. Berne. Disenteria. Diarreia. Assoalho. Espelho. Suor. Salitre. Guloseima. Canto silencioso da madrugada. Pinga-Pinga na varanda. Calha. Crepúsculo. Sarjeta. Escrutínio. Hectare. Latifúndio. Lavanderia. Pontilhão. Bicho de pé. Pombo. Rolinha. Ratazana. Ratoeira. Novilho. Montaria. Pão. Goiabada. Bananada. Rapadura. Raça. Serventia. Crença. Fé. Heresia. Magia. Magia negra. Corpo fechado. Fantasia. Herói. Cavalgada. Vaquejada. Doação. Danação. Donativo. Couve. Cava. Enxada. Horta. Pomar. Serraria. Serrote. Serra. Tronco. Descanso. Embala o berço. Babá. Mãe de leite. Chocolate. Travessura. Limpar a bunda. Cocô. Alergia. Febre. Dor. Temperatura. Frieira. Fratura. Fissura. Fragilidade. Velhice. Idolatria. Monarquia. Império. Bastardo. Petardo. Prisão. Justiça. Injúria. Cartório. Lei. Alegria. Canto da Cotovia. Colônia. Guerra. Paz. Bandeira. Feira. Dendê. Coentro. Fritura. Pimenta. Caboclo. Engana bode. Mata burro. Sal. Pião. Peão. Açude. Botoque. Caraminhola. Caatinga/

Origem do Candeal. Origem dos Olhos d’Água.

 

CANDEAL - LEMBRANÇA

can.de.al 
substantivo masculino
terreno onde crescem candeias (plantas)

Imagens voltam na memória. Sons ficaram para sempre. 

Talvez daí a necessidade do eterno retorno para o interior da Bahia. 

A Fazenda Candeal possuía 4.000 tarefas de terra. O equivalente a 1.742,4 hectares. Policultura, com plantio e criação de gado, sustentadas com o trabalho escravo. Era propriedade do primeiro marido de minha mãe, que a herdou, assim como a Fazenda Olhos d´Água. Ambas assumidas pelo nosso pai.

Quando foi nossa vez de ‘herdar’ o Candeal, eu e Elvira, os ‘valores frios’ me ensinaram a realidade da vida. 
Atenção: o Inventário completo no final deste livro, Degrau Testamento de João Justiniano, meu pai.

Onze (11) senzalas valiam 165 $ 000.  
Catorze (14) escravos, 9:500 $ 000, com nomes e idades: 
Avelina, 03. Veridiana, 03. Maria Vitória, 20, Manoel Paulo, boa idade, Thomaz, 40, Emilio, 30, Benedito, 33, Leandro Miguel, 18, Vidal, moço, Justina, 26, Rita, 35, Vicente, 24, Thomé, 04 e Venceslão, 03 (os dois filhos de Rita). 
+ e mais...
02 cavalos, 02 jumentos, 01 jumento novo, 01 jumento com cria, 50 cabeças ovelhas, 14.000 pés de fumo, 242 cabeças vacum, 84 cabeças vacum, 05 cavalos.

Como avaliar o que estas pessoas significaram para mim? Será que ouvia seus cantos e choros nas senzalas? Será que ia ao Candeal? Por qualquer motivo? Acompanhar meu pai nos negócios, apesar da minha tenra idade? Ir com minha mãe para descanso? 

Ensinar Elvira a dar nó no sapato? Quem me ensinou a calçar o sapato? 
Creio que foi Rita, a escravizada de 38 anos, com suas mãos delicadas e a idade de minha mãe.  
A Rita que tinha o mesmo nome de minha avó Riita? 
A Rita, mãe de Thomé e Venceslão? 
Qual terá sido a minha relação com Thomé e Venceslão? 

 

TESTAMENTO DE JOÃO JUSTINIANO, MEU PAI


Como prometido, segue o documento consumado/concluído em 02 de fevereiro de 1878, quando eu já estava prestes a embarcar para São Paulo onde fui estudar Direito.  

Por que deixei para o final? Porque narra o destino da Fazenda Candeal, em Feira, que me garantiu o sustento por um bom tempo. Tantas lembranças. Como o encerramento de um ciclo.  

Julgo importante registrar.
Não se apresse, ora pois. 

Tutores:
Leopoldino Batista de Oliveira – irmão de Maria Alvina
Quitéria Florencia dos Anjos Bastos – irmã de João Justiniano 
Aos números:
INVENTÁRIO e TESTAMENTO de JOÃO JUSTINIANO FERREIRA BASTOS 
FILIAÇÃO: João Ferreira Bastos e D. Rita Cacimira de Cacia (ou Cássia)  
NATURALIDADE: Portugal 
ESTADO CIVIL: Viúvo
CÔNJUGE: D. M_a Alvina de Oliveira Bastos (fal. 23.08.1860), irmã de Leopoldino Batista de Oliveira
RESIDÊNCIA: V. F. Santana MUNICÍPIO/DISTRITO: F. Santana COMARCA: F. Santana
MORTE: 20/07/1863 / Freguesia Afife – Viana do Castelo – PT
AUTUAÇÃO: 17/08/1863
CONCLUSÃO: 22/02/1878
Teve dois filhos que morreram: Elisa e Maria Quitéria. Deixou testamento em 11/03/1863, FSA. Era irmão de Quitéria e Maria. Deixou 500$000 para Honório Ferreira Bastos, filho natural de Felismino de Cerqueiro, sem dizer se era ou não seu filho. Era irmão de Rita c.c. Ant_o Fern_es da S_a, pais de Viriato e Cecília. 
INVENTARIANTE: Quitéria Florência dos Anjos Bastos (irmã) 
HERDEIROS 
(nomes e parentescos)
FILHOS 

  1. Filinto Justiniano Ferreira Bastos – n. 11.12.1856 -FSA - C ou G 10.12.1857 (06)

  2. Elvira – n. 26.11.1857 e C ou G 10.12.1857 FSA (05) c.c. Antonio Alves de Freitas Borja

BENS IMÓVEIS
(espécie, localização, utilização) 
VALOR
10:590$000
BENFS / EQUIFS= 1:025$000
- 01 casa edificada na R. Direita, esquina c/ Praça do mercado, com 5 portas e 4 janelas fr. Praça e 6 portas r. Direita / 4:000$000
- a casa faz. Candial cob. Telhas / 500$000
- a casa de fazer farinha arruinada / 45$000
- 01 armazém / 80$000
- 11 senzalas / 165$000 
- 01 estrebaria / 20$000
- as terras da fazenda Candial / 1:500$000
- as cercas da fazenda / 150$000
- 01 quintal na mesma / 100$000
- 01 pasto de reserva / 200$000
- 01 tanque / 150$000
- 01 cacimba / 50$000
- 04 caldeirões / 60$000
- as terras da faz. Olho d’Água (M.Alegre) / 500$000
- a casa da mesma, cob. telha / 250$000 
- 02 currais estragados / 30$000
- 01 cercado estragado / 80$000
- 02 senzalas cob. telhas / 25$000
- 01 tanque cercado / 150$000 
- 01 tanque de pedra / 100$000
- 01 tanque velho / 60$000
- 01 tanque pequeno / 20$000
- 02 caldeirões pequenos / 30$000
- 01 casa na R. Direita (FSA), c/ 3 portas / 350$000
- a ½ parte de 1 sobrado à rua Direita / 3:000$000
ESCRAVOS (14)
(nome, raça, idade, profissão)
VALOR: 9:500$000
- Avelina, fd, 03 / 300$000
- Veridiana, fd, 03 / 300$000
- Maria Vitória, er, 20, serv. lavoura / 1:000$000
- Manoel Paulo, er, boa idade, serv. lavoura / 650$000
- Thomaz, er, 40, serv. lavoura / 650$000
- Emilio, cb, 30, serv. lavoura / 800$000
- Benedito, er, 33 serv. lavoura / 650$000
- Leandro Miguel, er, 18, serv. lavoura / 1:000$000
- Vidal, fdo, moço, serv. lavoura / 800$000
- Justina, fd, 26, serv. lavoura / 800$000
- Rita, er, 35, serv. lavoura / 800$000
- Vicente, fd, 24, serv. lavoura / 900$000 
- Thomé, fd, 04, filho Rita / 500$000
- Venceslão, 03, filho Rita / 350$000
PRODUTOS AGROPECUÁRIOS
(quantidade, espécie, utilização)
VALOR 
Produtos Pecuária = 9:645$000
Produtos Agricultura = 100$000
- 02 cavalos / 100$000
- 02 jumentos / 400$000
- 01 jumento novo / 100$000
- 01 jumento com cria / 120$000
- 50 cabeças ovelhas (2$) / 100$000
- 14.000 pés de fumo / 100$000
- 242 cabeças vacum (30$) / 7:260$000
- 84 cabeças vacum (15$) / 1:260$000
- 02 cavalos / 120$000
- 01 cavalo / 50$000
- 01 cavalo / 30$000
- 01 cavalo / 25$000
OUTROS BENS
(quantidade, espécie, utilização)
VALOR 190$000
- 01 mobília de jacarandá envernizada, c/ 12 cadeiras, 02 cad. braço, 01 cad. balanço, 01 sofá, 01 mesa redonda e 02 bancos / 150$000
- 01 espelho grande dourado / 10$000
- 02 mangas c/ castiçais de vidro / 10$000
- 01 serfentina de 3 braços de cristal / 20$000   
DÍVIDAS
(ativas e passivas)
ATIVAS: a receber de diversos devedores da loja
VALOR
2:946$211
PASSIVAS
VALOR
2:159$555
- ao menor Francolino Avelino d’Oliveira (enteado do inventariado, filho do Coronel José Vitorino d’Oliveira) / 1:559$555
- a Ant do Nascto F_a Bastos / 600$000
PARTILHA
Monte-mor / 33:996$211
Abatimentos / 4:559$555
Líquido / 29:436$656
Terça / 9:812$218
2/3 / 19:624$436
Legítima (2) / 9:812$218 

Observação minha: Tudo indica que a ordem – ou pedido – de meu pai era de vender todos os bens móveis e deixar apenas dois escravos, um para mim e outro para Elvira.

Creio, portanto, que cabe colocar mais dois trechos do testamento de meu pai:                               – 1ª verba – Declaro que sou natural de Portugal, filho legítimo de João Ferreira Bastos e D. Ritta Cassimira de Cacia, ambos já falecidos, sou viúvo de minha finada e sempre por mim chorada mulher D. Maria Alvina de Oliveira Bastos, com que tive quatro filhos sendo Filintho e Elvira que são vivos. Eliza que morreu ainda em vida de minha finada mulher, Maria Quitéria que morreu depois do passamento de sua mãe, por conseguinte são meos dois filhos Filintho e Elvira ou seus legítimos descendentes, meos herdeiros.

– 8ª verba – Pesso tão bem que seja tutor de meos filhos Filintho e Elvira o meo cunhado Leopoldino Batista de Oliveira ou minha irmã Quitéria Florencia dos Anjos Bastos, pedindo-lhe que os bens perecíveis os botem em praça, ficando alguns escravos que melhor acharem para serviço de meos dois filhos Filintho e Elvira muito pesso ao tutor e te stamenteiro de meos filhos que fação o que puderem quanto a sua educação afim de que quando algum dia cressão disconhecerão esse mal tão pernicioso da ignorância. Villa de Feira de Santana, onze de março de 1863.

CANDEAL REAL 
(talvez um dos mais difíceis de escrever)

Vamos regredir um pouco no tempo. 

Em 10 de julho do ano de 1854 – portanto, dois anos e cinco meses antes do meu nascimento – foi registrado o inventário do capitão José Vitorino de Oliveira, primeiro marido de minha mãe.

É possível identificar 25 escravizados/as: 15 homens e 10 mulheres. 
Entre as profissões, constam, entre outras, ‘sapateiro’ e ‘da enxada’. 
Entre as cores, ‘Cabra’ ou ‘Crioulo’ ou ‘Parda’. 
Entre as moléstias, ‘doente do ar do vento’. 
Havia crianças cativas, nascidas no local. 

Quando minha irmã Elvira Bastos de Oliveira casou-se com Antônio Alves de Freitas Borja, a Fazenda Candeal foi transferida para o casal. Afinal, eu já estava longe, na lida do Direito. Acredito ter sido uma compensação pelos investimentos que a família fez na minha educação. 

Nada mais justo.  

Há registros de que meu cunhado, do alto do solar do Candeal, intitulado Tenente-Coronel pelo Império, embora proprietário de uma faixa pequena de terra, as tais quatro mil tarefas de terras, se sentia como grande proprietário – e de ser informante de jornais da época, como o ‘Folha do Norte’. 

Seu inventário começa bem: 
– Declaro que sou filho legítimo de Francisco Alves de Borja e Rita Maria de Freitas, já falecidos, e natural da freguesia de Nossa Senhora dos Humildes, neste Estado da Bahia. Declaro que fui casado com Elvira Bastos de Freitas Borja, tendo do meu casamento:
Hilda, que falleceu em tenra idade;

  1. Esther, que foi casada com Dr. Agnello Ribeiro de Macedo e falleceu deixando vários filhos;

  2. Dr. Antonio Bastos de Freitas Borja, professor cathedrático da Faculdade de Medicina da cidade de Salvador, da Bahia.

Ah, Elvira, Elvira, Elvira.
Ah, Borja, Borja, Borja. 

Nessa época, o Candeal tinha nove (9) senzalas e sete (7) escravos: 
Thomas, preto, 55 anos, avaliado em 250 mil réis, capaz de todo serviço, da lavoura; 
Manoel Paulo, preto, 50 anos, avaliado em 300 mil réis; 

  1. Fernando, preto, avaliado em 900 mil réis; 

  2. Epifanio, fulo, avaliado em 900 mil réis; 

  3. Veridiana, fula, 11 anos, capaz de todo serviço, da lavoura, avaliada em 700 mil réis, filha de Justina, escrava de outro domínio; 

  4. Avelina, fula, 11 anos, avaliada em 700 mil réis, dedicada ao serviço da lavoura, filha de Faustina, escrava de outro domínio; 

  5. Julita, fula, 11 anos, avaliada em 700 mil réis. 

Aqui fica um momento delicado para me colocar. 
 
O velho Borja vai além. Muito além. Reconhece mais dezoito (18) filhos. 
Sim, mais dezoito filhos. Você leu bem. Teve 18 filhos depois de viúvo. Pelo menos com a dignidade de reconhecê-los todos, inclusive filhos de mulheres casadas, tanto escravas como donas de terras. 

A preocupação de Antônio Alves era mostrar que havia encaminhado os seus filhos. Todos assinam Alves de Freitas. Por suas palavras: 

– Declaro que já reconheci como meus filhos havidos de Avelina Maria de Jesus: 
Lúcia, Davina, Andrelina,  Mario, Claudiana, Iderlina, Maria e Francisco.

– Declaro mais que na forma do Art. 357 do Código Civil Brasileiro, reconheço como meus filhos, havidos de Veridiana Bastos de Oliveira, mulher solteira: Romualdo, Aureliano, Erico, José, Faustina, Maria Jonas e Joanna: 

– E havidos de Julita Maria dos Santos, também solteira: Affonso, Arthur, Glyceria, Lucilo, Rosa, Francisco e Paula. 

As mulheres escravizadas com as quais reconheceu ter tido filhos aparecem no inventário de 1882: Veridiana, Avelina e Julita. 
Em 1882, Veridiana, Avelina e Julita – repito os nomes, pois são minhas contra parentes – tinham 11 anos de idade.

Com quantos anos cada uma terá tido sete (7) filhos/as com ele? 

PS: Ao se deparar com a enorma confusão testamentária, os filhos Antonio e Esther abriram mão de grande parte dos bens e seguiram com suas vidas pessoais e profissionais, já em Salvador.   

A vida do meu cunhado é que valeria um livro, e não a minha, asséptica e tranquila. 

Embora eu diga que nem tanto asséptica assim, muito menos tranquila.


CANDEAL - MATINHA DOS PRETOS

Havia rebeldia. 

Alguns escravizados ousavam colocar cobras nas botas de seus senhores. Ou sob as camas e cobertas.

Outros fugiam e se escondiam em uma área de mata cerrada e pequena, a matinha. Surgia a Matinha dos Pretos.  

O quilombola e a quilombola insistiram e persistiram. O Quilombo virou bairro. Sua origem está na fuga de escravizados e escravizadas da Fazenda Candeal. 

Ao se revoltarem, fugiam para uma mata pequena, porém fechada, no interior da própria propriedade. Mata densa e fechada, ganhou o nome de Matinha, por ser pequena. 

Alegres ‘auto-libertos’ do cativeiro.

Sem açoite. Sem algemas. Sem gargalheiras. Sem golilhas. Sem libambo.

INVENTÁRIO E TESTAMENTO DE JOÃO JUSTINIANO_ORIGINAL

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