PRIMEIRO CAPÍTULO. DEGRAU HUM.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Braz Cubas
Fiat iustitia, et pereat mundus
Immanuel Kant
A CIDADE BAIXA & A CIDADE ALTA
“Faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça”. Tentaremos seguir a epígrafe kantiana.
Costumo contar o tempo em diálogo com os degraus de uma escada. Quaisquer delas.
Dizem que meus alunos da Faculdade Livre de Direito e funcionários dos Tribunais acertavam os ponteiros dos relógios pela minha chegada na sala de aula.
Completei 17 quando estava no Seminário de Santa Teresa. Era mais fácil. 17 anos, imagine, dezessete viradas de calendário. Um moçoilo.
O lugar, fundado por seis monges da Ordem dos Carmelitas Descalços, fica bem na encosta de uma rocha debruçada sobre a Baia de Todos os Santos.
Lá atrás, em 1661, a escalada devia ser bem difícil. Fachada de linhas clássicas, imagino o que as seis almas penaram para erguer uma Igreja e um Convento com inspiração no modelo romano de Vignolo.
Como as plantas arquitetônicas vieram de lá?
Navio transoceânico do século 17 não devia ter escada. Por isso, me aproveitava desse espaço para pular de dois em dois degraus – e facilitar a conta. No zig-zag entre construções, misturam-se escadas de mármore, madeira e lajotas. O raciocínio precisava ser rápido. Como ficar de olho no futuro.
Na época, ainda não me imaginava casado e com filhos. Quanto mais, com uma extensa família que se espalhou pelo Brasil durante todo o século 20. Estava em um Seminário.
A clausura seria minha vida?

Hoje, já falecido, só observo os passos que dei. A minha despedida foi em 1939. Por um segundo, perdi a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, sete meses. Parti em 08 de fevereiro e o conflito começou em 1º de setembro. Pouco importa.
Só torci para que meus herdeiros não fossem lutar na Europa, quanto mais no inverno. Como tinha maioria feminina lá em casa, pude aproveitar o calor de muitos verões com banhos na Ponta do Humaitá – também Ponta de Mont Serrat –, onde comprei a casa de número 50, em 1917.
De lá, diante do Oceano Atlântico, assistimos o fim da Primeira Guerra Mundial e a chegada da Gripe Espanhola.
O ano de 1919 me parecia livre das duas tristezas. Guerra e peste.
A influenza hespanhola, que nem era da Espanha, nem merece as letras maiúsculas que foram adotadas pela historiografia. Voltarei a ela qualquer hora, caso queiram. Virologistas, patologistas, epidemiologistas, demografistas, historiadores, antropólogos e geógrafos terão mais conhecimento para lhes passar. Inclusive um futuro contraparente. Adivinhem. Por enquanto.
Como se vê, como se dá para notar, vou aos saltos por escadas, quaisquer delas.
A casa geminada com outras cinco, fica em uma pequena península. Acho lírico falar e soletrar Península. Pe-nín-su-la de Ita-pa-gi-pe. Mas ressalto que era pequena e só comportava, além das seis casas, um clube náutico, um farol e uma igrejinha, a de Mont Serrat, que também empresta o nome para a Ponta da Península – e servia de mosteiro intermediário para jovens seminaristas. Além de um Píer, lógico, para atracar os barcos.
Folhetos turísticos dizem que no alto da Ponta, está o Forte de Mont Serrat ou São Felipe, do século XVI, considerado o mais ‘belo monumento militar’ – se é que se pode considerar belo o que é militar. É de 1583, fica numa posição estratégica da Baía, mas só foi concluído em 1742, conforme planta original. Soube por várias fontes que hoje abriga o Museu da Armaria, com armamentos civis e militares.
Prefiro olhar as marés de outra maneira.
Logo no hall de entrada da casa 50, ainda existem roldanas em um pé direito alto para suspender uma liteira – por nós nunca usadas –, duas portas laterais para os porões – onde ficavam os escravizados e/ou empregados – e uma escada de 10 degraus. Que lindo número composto. Tão belo que poderia ser primo.
Ah, escrevi ‘ainda existem roldanas’ porque vez em quando dou uma investida por lá.
Já faleci, mas sigo vivo.
Se a ciência me negar esse direito, vou apelar para a religião. E se ela também o fizer, argumentarei com todas as tábuas de Direito do mundo, seja civil, seja romano. Se for a julgamento popular, insistirei e escreverei um romance.
Afinal, por bom ou mau gosto, virei imortal pela Academia de Letras da Bahia. Ocupei a cadeira 21. A mesma posteriormente sentada pelo criador do funcionário público Joaquim Soares da Cunha, o Quincas.
Um contemporâneo meu, carioca, já escrevinhou que Moisés, no Pentateuco, também contou a sua morte a partir do nascer da vida.
Eu comecei pelos dezessete dos oitenta e três que vivi: 1856-1939.
Até o final desse livro, prometo descrever quantos dias foram. Não sei para quê serve esse tipo de contabilidade, mas não só matemáticos gostam de números. Aos 17, estava com um pouquinho mais do que um quinto da vida completa (16,6).
Poetas contam estrelas. A conta nunca fecha.
Para a minha Carolina, a Calu, fiz, faria, farei de tudo, grande amor da minha vida. Feito Marco Antonio para conquistar Cleopatra, doaria 200 mil livros para a Biblioteca da minha Alexandria, a Bahia
DEGRAU X ELEVADOR
Só sei de uma coisa.





Com essa idade, 17, fiz uma caminhada de 10 minutos. Desci a Ladeira da Preguiça – sempre de olho nas pedras do caminho, que me serviam como degraus – adentrei pela Rua da Conceição da Praia e cheguei na Praça Visconde de Cayru. Dali, como em um passe de mágica, eu poderia subir para outra Praça, a Tomé (ou Thomé) de Souza – para quem não sabe, o primeiro Governador Geral do Brasil.
Uma novidade estava prestes a acontecer na cidade da Bahia.
Ali eu me questionava se deveria ter seguido a carreira de engenheiro, em vez de padre. Lembro bem. Oito de dezembro de mil oitocentos e setenta e três.
A Igreja Conceição da Praia tem um desenho único entre as centenas de Salvador. Espécime única. O povo estava ensaboado, envaidecido e perfumado para a efeméride. Bandas militares ecoavam cânticos sagrados, mas também populares. Será que tinha fogos, ou minha memória está confusa?




Cafusa era a multidão.
Chapéus para mulheres e homens. Ternos de linho. Tafetás e Camafeus para as mulheres. Algumas abanavam seus leques europeus. Brancas e negras disputavam quem ornava as melhores – e maiores – joias. Isso é um assunto delicado, abolicionista que serei. Ou fui. Sou. Ainda se vive a escravidão no Brasil. Lá estavam muitos escravizados e libertos – também com seus escravos. Parecia praxe. Especialmente entre diferentes etnias. Mentalidade enraizada, infelizmente.
A branquitude da elite da Bahia, nesse dia, não deixava dúvida sobre quem era quem. Os palanques das autoridades refletiam a brancura do vestuário e das sedas.
No ar, o aroma de perfumes franceses se misturava com águas de colônia caseiras. A Guerra do Paraguai tinha terminado na virada dos anos 1870 e a causa dos negros e mulatos ganhava força. A confusa Lei do Ventre Livre, que parcelava a vida dos recém-nascidos, em setembro de 71, precisava de métodos para ser aplicada – especialmente em uma sociedade onde as Faculdades de Direito e os Cartórios ainda estavam no nascedouro.
Em um estalo, pensei no assunto. Será essa minha vocação? Seria uma cena comum? Sem data. Naquela hora, em algum neurônio a ser investigado, perpretei os versos a seguir:

CENA COMUM
A geada cortante desfolhava
O belo cafezal, de madrugada,
E a sineta a forte balada
Da fazenda os escravos despertava.
Envolto na baeta avermelhada,
Cada qual o seu catre abandonava,
E com a mão, que o frio enregelava,
Este levanta a foice, aquele a enxada.
Um escravo gemeu, cheio de dor...
“O que tens, ó ladrão, negro manhoso?”
Pergunta em rudes vozes o feitor
O escravo gemeu ... vertiginoso
Um chicote batia, com furor,
No cadáver do negro desditoso.
Tergiversei.
Hoje era dia de festa.
Seminarista e solteiro, aos 17, naquele 1873, eu só queria saber da celebração que se desenrolava em volta do engenheiro Antônio de Lacerda. Sua ousadia diante da falha geológica de 60 metros que separa as duas cidades de Salvador: a alta e a baixa. Lacerda teve a ideia de construir o primeiro elevador urbano do mundo. A primeira torre com 63 metros.
Todos nós a chamávamos de ‘Parafuso’ por causa da espiral que impulsionava as duas cabines do elevador. Iam 20 pessoas a cada viagem. Antes, eram pesadas para não ultrapassar o limite.
Li em algum lugar, que o Barão de Jeremoabo, codinome de Cícero Dantas, latifundiário nordestino, registrou, como se fosse contagem de gado:
– Em 16 de março de 1889 pesamo-nos no elevador, dando o seguinte resultado: Pinho — 54 quilos, ou 3 arrobas e 98 libras; Cícero — 61 quilos, ou 4 arrobas e 2 libras; Guimarães — 65 quilos ou 4 arrobas e 10 libras; Artur Rios — 73 quilos ou 4 arrobas e 26 libras; e Vaz Ferreira — 115 quilos, ou 7 arrobas e 20 libras.
Olhando de baixo, parecia uma torre de castelo de ponta-cabeça. Ou cabeça para baixo. Gosto das expressões. Uma ponte liga(va) a praça à entrada do elevador. Uma cobertura côncava de ferro protegia os passageiros do sol e da chuva. Nessa ‘torre’, havia quatro níveis, além do piso superior. Com dois arcos nos três primeiros e seis no
inferior – em combinação com oito ou nove ou dez arcos maiores que sustentam a praça superior.
Abaixo, uma mata ladeava o elevador e separava as ‘cidades’.
A de baixo, com grandes prédios coloniais. Acima, do lado direito, o Palácio Rio Branco, imponente, domina toda a vista da Baía desde Tomé – ou Thomé – de Souza. Porta de entrada e chegada nobre para o Elevador. O prédio imponente já tinha sido colonial e estilo português. Foi Casa do Governo desde 1549. Foi Palácio dos Vice-Reis e Vilhena no século 18. Era Palácio do Governo da Bahia quando o Lacerda foi inaugurado. Só em 1919 ganhou reforma afrancesada e renome do Barão.
Anos depois, em 1930, na mesma época que um tal Getúlio assumiu a presidência do Brasil – mas sem ter nada com isso – fui testemunha de uma reforma no Elevador Lacerda, que ganhou 9 metros e outra arquitetura. Confesso que gostei.
A Otis Company, que segue comandando as cabines, participou da repaginação com mais uma torre e uma ponte de aço e concreto que une as estruturas. Admirei o art déco, as pilastras e os vãos finos do novo projeto.
Aos 74 anos, estive lá com cinco filhas, Elvira – e seu filho Nelito --, Mariasinha, Laura, Margarida e Hercília, e três netos que criei, Jorge, Heloisa e Cora. São de Geraldo de Alcântara Leal, juiz feito eu, e Cora, filha minha que morreu no terceiro parto, justamente de Cora.
Só não aplaudi o discurso do Interventor Federal, a mando de Vargas, cujo nome declino aqui, para não lhe dar pelotas. Apenas registro que seu partido era o Republicano Baiano – sem H. Curiosamente, o mesmo PRB do governador deposto, que tinha sido eleito por sufrágio universal.
A democracia é um poste que conduz fios de eletricidade – e que pode ser derrubado por tratores ditatoriais. A manutenção da rede é fundamental.
Retomando o bonde da história.
Em uma nota da revista Fortune, confirmei que 24 mil habitantes subiram ou desceram pelo Lacerda, logo na reinauguração. Em 22 segundos, se vai do chão ao céu.
O Antônio de Lacerda era perspicaz.
Eu mesmo já tinha andado nos bondes de tração animal que ele controlava. Tanto que criou a Companhia de Transportes Urbanos. Por isso, quis montar algo mais ousado do que os Lifts e Hoisting Machines da Europa. Para isso, teve de furar um túnel pela rocha viva. Está aí um exemplo para nosso dia a dia.
Ao fim da festa e celebração pela modernidade que a cidade adquiria, retornei ao Seminário. Repriso: 17 anos.
Apesar da modernidade, gosto mesmo é das escadarias e ladeiras irregularmente pavimentadas de Salvador – e por onde conto os degraus, escrevo meus versos e sentenças ou faço orações.
O Lacerda está incrustrado na mesma formação rochosa da Ladeira da Montanha, o que certamente daria um bom Sermão. Ou obras, como faziam os jesuítas, empreendedores religiosos, cuja Companhia construiu e administrou o Guindaste dos Padres, o mais famoso entre os ascensores erguidos por Ordens Religiosas desde 1610.
Ali perto, na nova Praça Castro Alves, em 7 de setembro de 1916, foi inaugurado um lampadário. Estive na abertura. Também estavam vários antigos abolicionistas. Diante do monumento, o geógrafo Teodoro Sampaio. Negro, nem preciso dizer. Entre as palavras, a defesa do Esperanto, da transladação dos restos mortais de Dom Pedro II e pela obrigatoriedade da instrução primária.
Educação em primeiro lugar. Mas só nas palavras.
Tudo foi registrado nos anais do IGHba. O discurso de Teodoro aconteceu no 5º Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido no Ginásio da Bahia, perto de minha futura casa, na Avenida Joana Angélica.
Sucesso na luta pela instrução pública e democrática.
Lembranças do que nosso pai falou, em testamento, sobre a ‘ignorância’ que eu e Elvira, irmã, deveríamos evitar.
O destino nunca pode ser outro...

Elevador Lacerda