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FEIRA DE SANT'ANNA_BAHIA

NASCER

17 de janeiro de 1856.

Casamento de João & Maria.

Verão.

Feira ferve.

11 de dezembro de 1856.

Calor.

Feira ferve.

O verão só começa em 10 dias.

A quentura do quarto antecipa como será a temperatura da próxima estação.

A parteira bate palma no alpendre da porta.

Eu a ouço, embora ainda esteja respirando pelo cordão umbilical.

Sorvo o último alimento antes de ser alçado na minha aventura.

Preciso preservar minha mãe, ainda jovem, e que já tivera filhos.

Mucamas circulam pelo quarto e por todas as dependências da casa.

Carregam bacias de água quente.

Fervem panos.

Nascer é, literalmente, um parto.

BATISMO(s)

Fui batizado na pia da Matriz de Santana em 10 de dezembro de 1857 pelo Vigário José Tavares

da Silva.

Católico sim, católico sou, católico sigo.

Ser primogênito é um desafio.

Desde cedo percebi a responsabilidade que o destino ia me jogar nas costas. Antes de prosseguir

nessa construção de árvore genealógica, deixe eu localizar você no mapa. Estamos em Feira de

Santana, geograficamente no agreste, jovem cidade fundada em 1832, e que tinha forte ligação

cultural e econômica com o Recôncavo Baiano. Cento e quinze quilômetros a separa de Salvador.

Tristes lembranças, vez em quando voltarei a narrar, entre doenças e mazelas. 

A epidemia assolou a Bahia entre 1855 e 1856, meu ano de vir ao mundo. A insidiosa doença

deu medo e insegurança.

 A peste deixava de ser bíblica. O conforto de Deus ficava difícil contra o discurso médico.

Autoridades públicas e sanitárias desautorizadas diante da ciência.

 

O morbo, o morbo. Eita Febre Amarela.

O que será de ti, peste bubônica?  

 

Órfão de mãe aos quatro anos. Órfão de pai aos seis anos.

Quem merece esse destino?

 

Luto. Luto. Luto.

Palavra com duplo sentido.

Lutei, por toda minha vida.

Contra a morte.

 

A morte é uma chatice. Sei porque a vi de perto e a senti na própria pele.

Logo eu que fui por idade e prazo de validade.

 

À todos deixo explícita a dedicatória que lavrei na publicação de ‘Estudos de Direito Penal’,

publicado em 1911 pelas editoras Joaquim Ribeiro & Co. e Livraria Dois Mundos, sito na rua

Conselheiro Saraiva 35, Salvador, Bahia.

Está eternizado entre caixas altas e baixas:

À MEMÓRIADE MEUS PAIS

João Justiniano Ferreira Bastos e Maria Alvina D´Oliveira Bastos

Com letras menores, subscrevi:

DE MINHA TIA E MADRINHA

QUITÉRIA FLORENCIA DOS ANJOS BASTOS

E DE MINHA IRMAN

Elvira Bastos de Freitas Borja

Homenagem de muito amor e imperecível saudade.

 

EDUCAÇÃO / EDUCASSÃO 

Seguimos.

Por disposição orçamentária, meu pai recomendou com expressiva preocupação e o mais alto

descortino, que todo o possível fosse feito ‘quanto a sua educassão’—minha e de minha irmã

Elvira ‘afim de que quando algum dia cressão desconhecerão esse mal tão pernicioso da ignorância’.

 

Será que este documento ainda está no cartório da minha Villa de Feira de Sant’Ana? Foi carimbado

no dia 11 de março de 1863, apenas seis meses antes da própria morte. Espero que algum tabelião,

notário ou registrador possa me ajudar. 

 

Na ortografia atual, seria:

 

– Cuidem bem da educação de Filinto e Elvira a fim de que, quando algum dia crescerem, desco-

nheçam esse mal tão pernicioso da ignorância. 

 

Eu, FB, certo dia escrevi. Só esqueço a data:

 

– (...) não me foi permitido fruir por poucos annos as caricias de meus paes.Falta, competente e

decisivamente, suprida, na orfandade, pelos magníficos exemplos que lhe foram propiciados por

uma santa, que me serviu de mãe, minha tia e tutora, irmã de meu pai, Quitéria Florência dos Anjos

Bastos.

Que os anjos protejam Quitéria...

 

 

Ela e eu. Em seu colo...

 

As primeiras letras, as tracei na Villa de Feira Sant’Anna. Meu primeiro desafio foi escrever o nome

do professor Lupério Leobino Pitombo. Danado de Cartório para fazer esse registro. Quem pode se

chamar Lupério Leobino?

 

Mesmo Filinto já é um acinte.

 

Lembrando que Leobino foi nome do meio-irmão que cedo faleceu.

 

Com Lupério Leobino aprendi o bom latim, o português escorreito e a necessária matemática.

 

A vocação religiosa, foi-me ensinada pelo padre Ovídio. 

 

Também lavrei: 

 

– Como se fosse agora mesmo que meus passos para a escola publica, onde nesta então villa iniciei

os meus estudos, tenho diante dos olhos a figura sympathica e inteligente do Professor Lupero Leolindo

Pitombo, competente, como os que mais o podiam ser, na difícil tarefa de inocular no animo das

crianças, com os ensinos da aula primaria, as boas normas da educação e da moral religiosa.

Zeloso no cumprimento dos deveres, sabendo foi, de prompto, na physionomia de cada alumno as

suas tendências, os seus desvios, ou a sua capacidade, ia racionalmente affeiçoando o discípulo

ao seu methodo de ensino, e raro aconteceu ficar sem resultado o seu esforço.

 

Parêntesis.

 

Alguns parágrafos atrás, comentei sobre o Lampadário na Praça Castro Alves e os discursos da

inauguração, que propugnavam a Instrução Pública.

 

O Brasil estava atrasado. Mais uma vez. Nos Estados Unidos, a campanha pelo ensino público e

gratuito fora vitoriosa ainda no começo do 19. Estava atrelado ao voto universal. Nem tão universal

assim porque era apenas para homens brancos. De qualquer forma, a população, especialmente do

norte do país, se alfabetizava. Organizavam-se os currículos e os saberes. Formatavam-se disciplinas

coerentes.

 

Por isso, prossegui em meu texto sobre o Professor Lupero Leolindo Pitombo – escrevo, de novo, o

nome inteiro porque deve ser lido em voz alta.

 

Ele e o nome:

 

– Assiduo, atenuando os rigores dos atrasados processos pedagógicos de antanho; attendendo a

um systema que era seu e que fazia com que o alumno não se cançasse, nem aborrecesse os livros;

o Professor Luperio foi esforçado paladino da instrucção primaria entre nós.

 

Eu e Elvira só temos a agradecer. Fico devendo ao mestre um estudo sobre seu curioso nome.

Releio e relembro:

 

– Lembro-me que, ao sahir da escola publica, aos dez annos, por me haver considerado prompto o

meu saudoso mestre, um jovem sacerdote zeloso e ilustrado, em 1867, fundava aqui um collegio de

ensino primario e secundario. Physionomia franca, bondosa, comunicativa, sabendo attrahir sem

esforço nem artifício, o padre recem-chegado cuidou logo de levantar o nivel da educação religiosa,

ao mesmo passo que lhe merecia carinhosa atenção a cultura intelectual da mocidade feirense.

 

Já o Padre Ovídio Alves de São Boaventura, nascido em 1942, com apenas 25 anos, teve a ‘boa

ventura’ – cometendo aqui o pecado do trocadilho – de chegar em boa hora para revolucionar a

educação em geral da minha terra natal.

 

Foi minha tia-tutora Quitéria Florência, amorosa e dedicada, que orientou esse pupilo para o sacer-

dócio. De treze para quatorze anos (ou catorze, como se escreve hoje), em 1870, ingressei no

Seminário Menor. Dois anos depois, ascendi para o Seminário Maior Santa Teresa, ambos em

Salvador, onde fiquei mais dois anos. Ao longo dessa longa ‘missiva’, como considero o testemunho

que ora escrevo, voltarei ao tema.

 

Só Elvira sobreviveu comigo. Por 25 anos. Mal me viu formado. Uma pena de tinta para descrever

essa eterna despedida. Viveu de 57 a 82 = 25 anos, um quarto de século apenas. O que a terá

levado? Que males cometeu? Por que a mortalidade segue tão alta no Brasil?

 

Febre de ‘máo caracter’.

De volta ao nosso inimigo invisível.

Ó cólera-morbo.

 

Outras histórias para outras páginas e muitos degraus.

PESTE NEGRA

A civilização, tanto no Oriente como no Ocidente, foi visitada por uma praga destrutiva que devastou nações e fez populações desaparecerem. Ela engoliu muitas das coisas boas da civilização e as eliminou.

Ibn Khaldun

Imagino o rosto do historiador árabe ao escrever estas palavras.

 

A pandemia foi de peste bubônica.  Quem não morreu, teve a vida revirada. Como um fogo que atingiu o continente eurasiano entre 1347 e 1351. Sobreviventes são desgastados pela sensação de inutilidade no trabalho e pelo abismo com os ricos e poderosos. Os nobres?  A Europa perdeu algo entre um terço e metade da população. Ironia. O historiador italiano Giovanni Villani e escreveu em 1348:

 

– E essa praga durou até ____.

 

A data final ficou em branco. Giovanni Villani morreu de peste antes de preencher o documento.

 

Peste negra. Cadáveres em valas comunitárias. Ironia. No campo, imagens de abundância e fartura. Campos de grãos maduros sob o sol. Uvas nos vinhedos. Não havia quem fizesse as colheitas.

 

Na segunda metade do século 14, a violência finalmente eclodiu na Europa. Trabalhadores encheram as ruas, queimaram registros feudais e contratos de trabalho – e destruíram as evidências de serviço e laços com a terra.

 

Os nobres reagiram. Queimaram aldeias e massacraram trabalhadores. Na Inglaterra, a Grande Revolta de 1381. Turbas executaram o tesoureiro-mor. Cabeça decepada na ponte de Londres, exigiam o fim do senhorio e não reconheciam nenhuma autoridade a não ser a do rei.

Tudo por causa da Peste.

Infelizmente apelidada de Negra.

 

SHAKESPEARE

A peste não escolhe ninguém.

 

Uma lenda diz que Shakespeare acreditou, durante anos, ter perdido seu único filho homem pela disseminação de doenças trágicas, tão trágicas como as peças que escrevia. O maior dramaturgo da história casou-se com apenas 18 anos e sua esposa, Anne Hathaway, só aprendeu a ler na velhice, depois de toda a fama do marido. Tiveram três filhos. A começar por Susanna, que se casou com um religioso radical e conservador, e os gêmeos Judith e Hamnet. Aqui se esconde – ou se revela – o maior dilema da vida dele: seu filho morreu com apenas 11 anos, em 1596.

 

Culpa, culpa, culpa.

 

O autor não estava em Strafford-On-Upon, sua terra natal, onde deixara a família, e para onde só retornaria em 1613, 17 anos depois da morte do filho.  Já estava famoso, após uma carreira vitoriosa iniciada em 1585, como ator, escritor e empresário teatral.

Era Shakespeare religioso? Pergunta que sempre me faço, quando tento duvidar de minha fé. O pai não podia frequentar a Igreja Anglicana. Não pela acusação de ser papista. E, sim, por dever dinheiro para metade da Congregação. Ironia. 
 

Estudiosos já disseram que a morte de Hamnet o levou a escrever Hamlet. Apenas similaridade de nome. Seria a dor pela perda do filho a essência da peça?

 

Uso a vida dele, que tentei traduzir, como metáfora de minhas perdas. Com poucos anos, perdi minha filha Elvira, a número 1, ainda bebê.

 

Ousamos, eu e Carolina, desafiarmos o destino e darmos o mesmo nome para outra filha, que viria depois, a de número 5, e que sobreviveu e me deu alegrias inimagináveis.

 

A morte de Hamnet me remete, mais, às perdas de Beatriz, número 6, Germano, número 8 e Filinto, número 9.

 

Ninguém pode imaginar o que significa a dor de um filho.

 

Virará chavão dizer que se vive contra a ordem natural das coisas.

 

Contra a dor, não há sentimento.

 

Há reza, sim. Mas, principalmente, lamúria e desafio.

 

Luto, luto, luto.

Luto do verbo lutar.

Luto, expressão de velar.

 

Perder um Filinto foi como se me perdesse totalmente.

 

Tudo isso na virada do século, da saída do progressivo 19 para o progressista 20. 

 

Quis o destino que o bebê e o velho William tenham nascido e morrido no dia 23 de abril. Não sei se há significado em coincidência de datas. Há superstição para analisar.

 

Ou a recente ciência da psicologia. Não a advogo. Mas respeito quem enxerga sinais até em entranhas de animais.

Shakespeare foi um sobrenome ilustre.

Desaparecido.

Até teve três netos. Todos morreram cedo.

 

A tradição de se herdar o nome do pai enterrou o sonho de eternidade nominal de William, mas não o de autor Shakespeare.

 

Não por acaso, afinal nada é por acaso, foi a escolha de Machado para abrir suas Memorias Posthumas de Braz Cubas. Usando trecho do act. III, sc.II, de As you like it, abre como epígrafe:

 

– I will chide no breather in the world but myself; against whom I know most faults.

O próprio fundador da ABL traduz:

 

– Não é meu intento criticar nenhum folego vivo, mas a mim somente, em quem descubro muitos senões.

 

E lá vai ele, Braz Cubas, feito eu, a escrever o Óbito do Autor:

 

—Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.

 

Personagem com vida expirada em agosto de 1869, fica aqui minha homenagem.

Era um defunto-bacharel.

 

Já Shakespeare, seguiu sendo meu farol de Mont Serrat. 

 

PROCISSÃO

Se me sobrasse tempo, gostaria de ensinar nossos escribas e tabeliões a redigirem frases mais curtas. A leitura abaixo é de tirar o fôlego. Nos meus livros, apesar das dificuldades que as citações latinas provocam, os parágrafos são relativamente curtos e com bom espaçamento.

 

Dito isso, me refiro à bela iniciativa de criar um Asilo Lourdiano. Fui testemunha à distancia. A narrativa me fez olhar os acontecimentos. Estava eu, já, em São Paulo. Mês de março, mês de início de ano letivo, mês de águas chuvosas. 

 

Ata da Fundação do Asilo Nossa Senhora de Lourdes, uma das santas que tanto admiro:

 

– Aos vinte e cinco dias do mês de março do ano do Nascimento de N. S. J. C. de 1879, nesta cidade de Feira de Santana, depois de celebrada na Igreja Matriz pelo Revmo. Vig. Ovídio A. S. B. o Santo Sacrifício da Missa com assistência do Revmo. Frei Salvador Maria de Nápoles, comissário Geral dos Capuchinhos no Brasil, Cong. Dr. J. Pereira, Pe. Aurélio Cândido Seixas e Vig. João G. Carvalho, acompanhados por autoridades locais e grande concurso de senhoras e povo de todas as classes, saíram processionalmente da Igreja as imagens do Senhor Deus Menino e de N. S. das Vitórias em seus andores, carregados por meninos, precedendo os outros, divididos em duas alas, levando bandeirinhas alusivas à cerimônia, seguindo no meio do préstito as órfãs que se iam recolher ao novo Asilo de N. S. L. acompanhadas das senhoras protetoras do dito Asilo, encerrando o acompanhamento o Revmo. V. Ovídio solenemente paramentado com os demais sacerdotes presentes, seguidos de numeroso concurso e povo.

 

Infelizmente não pude comparecer ao sacro evento. Já era março. Em 1879, eu estava em São Paulo. Prossegue a Ata:

 

– Desfilando o préstito pela Praça da Matriz e Rua Direita do Comércio em direção à casa destinada ao Asilo, aonde na melhor ordem se reconheceu, e, depois de feita solenemente pelo V. a benção da dita casa, dirigiu-se este ao salão destinado a Capela, onde havia um altar convenientemente ornado com quadro de N. S. de Lourdes, Padroeira e titular do Asilo, ali levantou incenso e depois de entoado por um coro de meninas um hino ‘Veni Sancte Spiritus’ leu a oração: ‘Deus que corda fidelium’ e em seguida convidou a dizer algumas palavras ao Revmo. Frei Salvador que recitou uma alocução análoga ao ato. E de tudo, para constar, lavrou-se a presente ata em qual assinarão todas as pessoas presentes.

 

Ufa! Parágrafos longos.

 

Será que os idosos e idosas seguem sendo atendidos? Em meus pensamentos, assim como as mulheres e esposas, precisam ser tratados pela mesma forma da lei.

CEB Centro de Estudos Bahianos 75 citacao de Filinto Bastos

29 de outubro 1966 Inauguração do Fórum de Feira de Santana

DISCURSO DO DESEMBARGADOR JOSÉ ROCHA FERREIRA BASTOS NA INAUGURAÇÃO DO FÓRUM FILINTO BASTOS EM FEIRA DE SANTANA - BAHIA

 

Bem compreendeis a minha justa emoção ao falar pela família FILINTO BASTOS, aqui representada por tres gerações, agradecendo a homenagem que o Govêrno do Estado, através de mandamento de lei por êle sancionada, presta à memória do extinto, ao dar o seu nome a êste FORUM imponente e suntuoso. 

A êste imponente FORUM plantado na sua terra natal, terra que êle tanto amou e enalteceu! 

Foi nesta encantadora FEIRA DE SANTANA, meus senhores e minhas senhoras, que passei os melhores dias da minha juventude, pois era preocupação de meu Pai transmitir à família a sua constante admiração por esta adorável terra. 

Lembro-me com saudades -- e tão longe vai o tempo -- da Chácara do VAlado e da Rua do ABC, onde as incomparáveis noites enluaradas faziam vibrar e enternecer o coração do moço estudante e cheio de ilusões!

Ah! Esta mocidade palpitante, fôrça motriz das grandes revoluções do pensamento, que no soneto lapidar de CRUZ E SOUZA, "lembra um inseto de ouro rutilante em derredor das chamas de um incêndio!". 

Aqui eu volto hoje encanecido e descendo já, e velozmente, a montanha da vida, respirando o mesmo ar de outróra e quase que desconhecendo a PRINCEZA DO SERTÃO, revestida de novas roupagens, e estuante de progresso, mas sempre a mesma FEIRA acolhedora e amiga...

Eis que o vaticínio de meu velho Pai se realizou quando êle, há cinquenta anos atrás, deixou escrito: "não verão talvez meus olhos, mas vêlo-ão muitos de nós, sôbre êste soberbo planalto salubérrimo, perfumado pelos alecrins, pelas angélicas silvestres, pelas candeias de ramos olorosos, delícia das infatigáveis abelhas; pompeando fascinante deslumbramento, em suas tardes de verão, quando na sege de púrpura, entre fulgurações indescritíveis, atirando pelo espaço, como um louco e pródigo nababo, as riquezas de pedrarias multicolores, se esconde o sol nas quebradas da serra não distante; contemplando a beleza da magnólia do céu em poéticas e suaves noites de luar, de inefável poesia". 

Sim, meus senhores, seus olhos não puderam contemplar o que ora contemplamos: altear-se sôbre êste formoso planalto uma cidade rejuvenescida, movimentada, opulenta, aureolada das luzes da instrução e do saber, ostentando as joias que lhe ofertou a natureza, e que o amor da Pátria, consagrado pela civilização, poliu e aperfeiçoou para lhe realçar a beleza, esmerando-se em adorna-la carinhosamente, com extraordinária solicitude, como se o fizesse à própria "noiva do sol".

Magistrado e professor, Filinto Bastos, afeito, dêsde cedo, às lidas do pretório e da cátedra, cumpriu, sem dúvida alguma, duas nobres missões, dois nobres ministérios: o de distribuir justiça, com o perdoável orgulho de, intencionalmente, jamais haver inobservado os preceitos fundamentais do Jus romanorum, o brazão que entendeu de colocar no pórtico de sua própria vida -- honeste vivere, alterum non laedere et suum cuique tribuere -- e aquela outra de transmitir conhecimentos com segurança e honestidade.

Presto, nêste ensejo, justo preito à Justiça da Bahia, ao seu Ministério Público, à nobre classe dos advogados e ao côrpo dos Auxiliares e Serventuários da Justiça, justiça que meu Pai, mercê de Deus, sempre dignificou, pelo seu exemplo e nunca desmentido amor às letras jurídicas. 

Renovo aqui a minha imperecível gratidão a V. Excia, Sr. Governador Lomanto Junior, cuja operosidade de administrador e proclamada além das fronteiras da Bahia, terra a que tem servido com inusitado devotamento tornando-se, dêsse jeito, credor do aplauso dos seus concidadãos, entre os quais jubilosamente eu me incluo.

Estendo o meu agradecimento a todos quantos de qualquer forma colaboraram nesta obra, marco indelével da estima e da admiração dos pósteros de Filinto Bastos, realçando o interesse da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, na pessôa do Prefeito Joselito Amorim, e da Secretaria de Justiça do Estado, tendo a frente o Prof. Dr. Jorge Calmon, e os representantes desta terra no legislativo estadual e federal.

Muito obrigado.

FEIRA DE SANTANA, BAHIA, 30 DE OUTUBRO DE 1966

ps: o Fórum começou a ser construído em 1964.

Jornal do dia da Inauguração do Fórum

FEIRENSE(s)

Eu saio de Feira. Feira é que não sai de mim. 

Alguém já disse – ou vai dizer – algo assim sobre sua própria cidade. Ou aldeia. 

A migração interna é imensa. Vem gente de toda Bahia e de todo sertão – inté da região sisaleira e do Nordestão. Cada um, cada uma, com sua forma de falar. 

O sotaque feirense tem pronúncia do ‘T’ e do ‘D’ diante do ‘I’. É o que chamamos de pronúncia dental, como no sertanejo, sem ‘chiado’. Às vezes tem o tu em detrimento do você. Como apagar o ‘R’ em final de sílaba. 

Barbero ao invés de barbeiro. ‘Ni’ ao invés de ‘em’, a preposição. Pouco vou para Ondina. Mas quando vou, digo ‘Em Ondina’ e não ‘Ni Ondina&rs quo;.  Meu Gerúndio tem a letra D. 

Em Salvador, escuta-se ‘falano’ e ‘escreveno’. Muitas línguas e estrangeirices num só local. Suiça, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, tem lugar para todo mundo. Falo ‘falando’ e falo ‘escrevendo’, assim como escrevo. 

Quando falta energia, digo ‘Deu prego’. Quando uma filha fica envergonhada, logo diz que está ‘xandida’. 

Na Península Ibérica, algures pelo século 6º, falava-se o espanhol e o galego, ambos derivados do latim. Galeguice conhecemos bem em Salvador. Tem (ou teve) até um time de futebol chamado Galícia. Chamamos de Galego quem é branco, branco, branco. Contrário dos negros, negros, negros.  
Pois bem, o galego de origem, lá na terra deles, abandonou certas letras intervocálicas, como o ‘l’ ou o ‘N’, que acabariam por definir o português. 
‘Voar’ não é ‘volar’. ‘Perdoar’ não é ‘perdonar’.


‘A PARASITA’
Abro um parêntesis para retornar um pouco no tempo e falar de um divertido periódico que foi lançado em 20 de maio de 1876 na minha Feira de Sant’Anna. Eu já estava no Seminário. 
Nome forte: A Parasita. Jornal Literário e Recreativo. Propriedade de uma associação. 
Logo na primeira página, a crônica justifica: 
– É um nome singular este para chamar uma gazeta, não acham? Pois bem, sejamos francos, em falta de um melhor, por mais conveniente, não há outro mais sincero. Ninguém se escandalize por isso. Estamos numa época, bem sei, em que todo mundo mente: o governo, a oposição, a direita, a esquerda. Dar as coisas o seu verdadeiro nome é o maior dos crimes: mas, que importa. 
E prossegue em sua explanação: 
– Cá por nós, quem não gostar coma menos. Era a máxima de um velho rico daqui que já espichou a canela e que todo mundo adula. Não há, porém, mais necessidade de argumentos para nós. Quem não sabe ser rei vive às custas de seus vassalos, a cura de seus fregueses, o comerciante dos pobres matutos a quem arrancam a pele e cabelo, etc. E que a Parasita se não vive tem de viver às custas de seus simpáticos assinantes. 
Prossegue o irreverente pasquim feirense: 
– E faço ponto: amanheci hoje na maré de falar a verdade, não sou como muitos que não enfadam de mentir. Nela como, pão-pão, queijo-queijo. Dizia o velho conhecido Suzarte de suspirada memória com um palomba digno de um predecessor Sancho Pança. Esse homem que se tornou famoso menos pela dedicação a seu ilustre amo do que pela frequência de seus adágios.  
Aprecio as palavras escorreitas e diretas. Só não digo a quem eles se referem. Porque não o sei. Como juiz, preciso sempre me posicionar nos autos. 
Nesse vai e vem, sem que ninguém me pergunte, posso dizer que aprecio, também, a teoria do eterno retorno ou eterna recorrência. 
É a roda do tempo que está presente na filosofia indiana, Egito antigo, Eclesiastes judaico e por aí vai e vem. O cristianismo a solapou. Nossa existência voltaria recorrente por um número infinito de vezes. 
Vejo poesia no pensamento. Dizem que Nietzsche fez a conexão do eterno retorno com vários pensamentos desenvolvidos por ele, inclusive a do amor fati, onde existe a aceitação da vida e do destino humano, até quando enfrentam os acontecimentos mais cruéis e dolorosos. 
É preciso ter um espírito superior, o que não é meu caso. 
A premissa é que o espaço e o tempo são infinitos.
Fiz esse atalho para avançar nos meus proprios pensamentos e aflições.



‘NOIVA DO SOL’ E ‘PRINCESA DO SERTÃO’ 
Nas comunidades rurais onde minha família já teve terras, já ouvi muito ‘em riba’ e ‘arrudear’. 

A periferia influenciada pelo rural. Não é pouco coisa. Dezenas de municípios vivem sob sua influência econômica. São 108 quilômetros de Salvador. Que poderia percorrer como numa romaria.  

Ali se pergunta de qual interior se veio. Sentem-se capital.  Meio como Campinas é para São Paulo. Sonha-se como alteza sertaneja versando sobre interações culturais, sociais e econômicas com a Roma Negra, ah, nossa Salvador. 

Eu não testemunhei a inauguração da BR-324. Carolina sim, graças a Deus. Perdi a década de 1940. Para mim, ir e voltar de Feira, inclusive para ler o texto que consagrei para a cidade, eram prazeirosamente feitas ao sabor do tempo, por carroças e carros de boi. Mas, principalmente, pela gloriosa chegada da Bahia and São Francisco Railway, estrada de ferro que ligou Salvador a Alagoinhas e outras, como Serrinha.

A segunda metade do século 19 foi um primor de trilhos. 
Que me levaram pela Serra de Cubatão e pelo Sertão da Bahia. 

Facilitou, principalmente, a vida de fazendeiros que, deslumbrados pela moda europeia, feito os barões da borracha amazônica e coronéis do Cacau de Ilhéus, saíam para comprar móveis e roupas em Salvador. Saíam a cavalo e carroças das fazendas e embarcavam na estação mais próxima. 

Para a querida Feira, dediquei uma longa homenagem em uma Conferência.
Ano: 1917 d.C., no histórico e já desaparecido Teatro de Sant´Anna.

Repito aqui as palavras, em asterisco, e até na forma de poema, o que não era, por ser, apenas, um discurso apaixonado. Até arrisco um estilo modernista para contrastar com as palavras góticas:

Não verão talvez meus olhos, 
mas vê-lo-ão muitos de vós, 
sobre este soberbo planalto salubérrimo, 
perfumado pelos alecrins,
pelas angélicas silvestres, 
pelas candeias de ramos olorosos,
delícias das infatigáveis abelhas:
pompeando fascinantes deslumbramento,
                                                          em suas tardes de verão,
                                                          quando na sége de púrpara, 
entre fulgurações indescritíveis,
                                                          atirando pelo espaço,
como um louco e pródigo nababo, 
riquezas de pedrarias multicolores, 
se esconde o sol nas quebradas da serra não distante; contemplando a beleza da magnólia do céu 
em poéticas e suaves noites de luar,de inefável poesia: 

Sim, meus senhores, meus olhos talvez não possam contemplar,
mas verão muitos, com certeza, 
altear-se sobre este formoso planalto uma cidade rejuvenescida,
movimentada, opulenta, aureolada das luzes da instrução e do saber,
ostentando as joias que lhe ofertou a natureza 
e que o amor da pátria,
consagrado pela civilização, poliu e afeiçoou, 
para lhe realçar a beleza,
esmerando-se em adorná-la carinhosamente, 
com extraordinária solicitude, 
como se o fizesse à própria noiva do sol. 

Gostaria que minha querida neta Heloisa, segunda filha de minha filha Cora, fizesse um desenho com as imagens que criei acima. Quiçá um descendente-herdeiro artista assim o possa fazer, nem que seja com imagens foto-cinematográficas. 
Viva a pintura. Viva a poesia. 

Antiga  Rua AURORA
Hoje Rua Desembargador Filinto Bastos
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