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PLANALTO DE PIRATININGA

TUPI

O sotaque paulista era alcunhado de desagradável.

 

–Português com sotaque tupi.

 

Sim, lembro bem porque li muito dos jesuítas que criaram uma espécie de língua geral. Mais tupi do que português. Assim como aconteceu nas terras do Pará, entre indígenas amazônicos, que tiveram sua língua suprimida para marcar a independência do Brasil.

 

Como observador anônimo dos transeuntes de Salvador, sempre me chamou a atenção os passos de Frederico Edelweiss. De origem estrangeira, era professor de língua tupi na Bahia e morava à beira mar, na Barra. No muro, mandou escrever: 

 

Pindó Pau~ me e iu´re iur

Por entre palmeiras vieste fixar morada

 

Registre-se que o acento deveria estar sobre a letra U.

Aqui tergiverso e salto para o futuro – e para o passado.

No Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, fundado em 1894, onde era sócio-efetivo, folheei com carinho um dicionário em Tupi que foi carinhosamente preparado pelo Padre José de Anchieta.

Recordei de uma poesia que, anos antes, tinha escrito para ele – infelizmente sem data e local.

 

ANCHIETA

Ninguém, ninguém mais forte às turbas aparece

À sua voz suave abala-se, estremece

A crença que o pagé nas tabas ensinou.

Tupã deixa de ser o Deus sanguissedento

Que ri, enquanto o inimigo, em tétrico lamento,

Sucumbe ao golpe atroz da seta que o varou.

 

Em vez de sangue haurido em luta fraticida,

O padre ao índio mostra a fonte, donde a vida

Surgir vai luminosa, ao verbo de Jesus!

 

A catequese espalha o santo missionário

E as tribos vão seguindo o bom itinerário,

Por chefe um padre tem, por auriflama a cruz!

 

Olhai-lhe a fronte nobre, ouvi-lhe a voz angélica,

Voz de verdade plena e de ternura célica:

“De Deus a boa nova aqui venho pregar”.

E o nosso grande Apostolo – intrépido Anchieta

Grandeza abandonou por mísera roupeta,

Couraça que defende a liberdade e o Altar!

 

Filinto Bastos

Completo: Anchieta, introdutor de livros no Brasil...

 

OS AMIGOS DOS LIVROS

Os livros têm vários inimigos.

A começar pelos iletrados.

Poupo aqui os analfabetos. Eles não têm culpa.

A busca pelas letras nunca tem data para começar. 

 

Os adversários são os obtusos, autoritários e retrógrados, assim como as traças e o

fogo. Ainda morava em São Paulo quando um incêndio se alastrou pela Faculdade de Direito. Foi em 1880 no famigerado Largo de São Francisco. O foco do fogo estava na biblioteca e no arquivo geral.

 

Como toda tese, há uma antítese e, consequentemente, uma síntese.

 

Foi a inspiração para os paulistanos criarem seu Corpo de Bombeiros.

 

Como fiel admirador de Leis e da Sagrada Igreja Católica, ressalto a Lei das Badaladas, que passou a vigorar em Salvador em 1854. Ao menor sinal de fogo, o toque dos sinos identificava o local do incêndio. Era obrigação da igreja mais próxima badalar conforme as instruções. Ao fim do incêndio, a mesma igreja dava um breve repique. Para apoiar bombeiros, escravos eram enviados para encher barris em chafarizes e fontes.

 

Em 1871, foi criada a Associação de Voluntários Contra Incêndios, que promovia rondas noturnas. Só em 1880, foram instalados os primeiros 10 hidrantes pela Companhia Queimado. Começaram pela Cidade Baixa.

 

Um alívio para nós, habitantes. Um respiro para a família Bastos. Até hoje não sei se é verdadeira a história de que os índios emitiam sinais de fumaça.

 

Livros também não gostam de armas nem de bombas – mesmo os que estimulam seu(s) uso(s) em obras autoritárias.

 

Diga-se e registre-se: sou contra qualquer tipo de censura.

 

Não entrarei em detalhes políticos porque não sou historiador. Seguindo o preceito de Virginia Woolf, deveria ter um diário. Foi o que escreveu em 1919.

 

– Que tipo de diário eu gostaria que fosse o meu? Algo tecido como uma malha frouxa, mas não desleixada, tão elástica que abrace qualquer coisa, solene, leve ou bonita, que venha à minha mente.

 

Atendendo as ordens da escritora da Grã-Bretanha, soltarei tudo que for solene, leve ou bonito que me venha à mente. Vamos lá.

CAFÉ E CHÁ

Terra inóspita, pequenina, sem graça, fria, mas por onde Castro Alves tinha soltado verbos e vozes.

 

Se o Elevador me encantou por sua engenhosidade, um dia veria alguma solução para aquele vale que ficava aos pés da chácara do Barão e da Baronesa de Tatuí, chamada Morro do Chá, a erva que vinha da Índia.

 

Várzeas pantanosas.

 

Entre muitos degraus da minha jornada aí pela Terra, posso dizer que a melhor metáfora para a virada do século em São Paulo está na transposição do Anhangabaú pelo Viaduto do Chá – e já, já explico. O vale é uma fronteira, um limite, para ser atravessado. Era a viagem do centro velho para o oeste.

 

Lembro bem. Vez em quando nos aventurávamos em cruzá-lo. Boas recordações da cidade que se prometia metrópole. Mas era difícil. Os bondes eram puxados com o apoio de animais extras nas subidas das encostas. A travessia se dava por duas pequenas pontes.

 

E as enchentes?  Ah, as enchentes.

 

O Brasil sempre teve seus estrangeiros aventureiros para oferecer solução. Foi o que aconteceu em 1877, pouco antes da minha chegada. O litógrafo – beau mot – francês, Jules Martin, desenhou uma ligação aérea por cima do vale, onde se plantava chá da Índia.

 

Délicieux, por sinal.

 

Mas perdi o bonde. Ou melhor, o viaduto, que só ficou pronto em 1892. Assim como nosso bahiano Lacerda, Jules buscou dinheiro na iniciativa privada, que já loteava as chácaras nos bairros de Santa Cecília e Campos Elíseos. Tudo veio da Alemanha, especialmente a estrutura metálica que não se fabricava no Brasil. Assim como as leis, as peças foram numeradas para que os trabalhadores a montassem.


Pedágio sempre existe. Na vida e na morte.

 

Por quatro anos, o viaduto ganhou o apelido de três vinténs. Preço a se pagar, como se faz até hoje no Elevador de Salvador. Até que em 1896, a Câmara aprovou a encampação e liberou a passagem. Na grande virada de século, já eram mais de 240 mil habitantes de diferentes origens, cores, etnias, fés e atitudes.

 

Para quem vinha de um sertão nem tão sertão e de uma cidade estilo portuguesa, o conflito era claro. Em ficção, poucos escreveram tanto sobre os estudantes de Direito de São Paulo como o carioca Machado, o de Assis, homem de uma cultura ímpar. E que nunca pisou lá. 

 

De 1872 a 75, o governo de João Teodoro teria promovido o que se chamou de ‘segunda fundação de São Paulo’. Exageros à parte, faz sentido. Queria o progresso para montar um programa presidencial.  Aliás, ambição de grande parte dos estudantes do Largo de São Francisco. Dizia que era a junção entre estética e estrutura.

 

Transformar São Paulo na 'capital do café'.

 

Nunca fiz a sonhada caminhada, já que de lá saí em 1881.

60 reais ou 03 vinténs pagavam a passagem do centro em que vivi, entre tantas Repúblicas de Estudantes, para a que nascia com a do outro lado do vale, para onde cresceu.

 

Não pelo chá. Pelo café.

Depois de minha formatura, nunca mais retornei para o Planalto de Piratininga.

 

Gosto de escrever esse capítulo paulistano, cidadania que quase adotei.

Se não fosse a saudade de Feira, da irmã Elvira e de parentes, do sotaque bahiano e das oportunidades em meu estado, poderia ter ficado.

Convites não faltaram.

 

Se o tivesse feito, teria presenciado a Revolução Constitucionalista de 1932. Com muitas opiniões sobre as Constituições brasileiras – tema que voltarei a tratar – debruçar-me-ia sobre o que levou os paulistas a se rebelarem contra Getúlio Vargas.

 

E em 1935, teria visto o início da construção de um novo Viaduto do Chá – dessa vez, com tecnologia brasileira. As Faculdades de Engenharia, assim como as de Medicina e Direito, já jorravam alunos com muitas inovações. Em Art Déco, apreciei as fotos dos 66 metros do arco central.

 

Gosto da analogia de que uma ponte sempre é utilitária, mas depende do vazio do arco para exalar sua beleza.

COADOR DE CAFÉ

Pelos caminhos de Salvador, quando passeio por suas calçadas ao lado de Carolina ou quando dou passos largos para chegar ao Tribunal, sinto o gosto de café nos meus lábios. Nada fácil encontrar uma boa água preta coada em pano de algodão, com aquele grão único e moído que logo dominaria o mundo. O Brasil se transformou em potência. São Paulo teve sua parte nessa história. Fui uma modesta testemunha. 

Lembra, leitor, dos versos que cometi/comentei há pouco?

 

A geada cortante desfolhava/ O belo cafezal, de madrugada, / E a sineta a forte balada/ Da fazenda os escravos despertava.

 

Hora dos escravizados.

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